Cristo Rei

Lida de trás para a frente ou da frente para trás, a Bíblia é um tesouro donde se tiram sempre coisas novas e coisas velhas, tantas, tantas…! Mas algumas páginas ou cenas ficam-nos marcadas para sempre! Não há livro nenhum, pelo menos na cultura do Primeiro Mundo, tão entranhado na cultura culta e na popular como a Bíblia. Então há cenas que, mesmo sem querer, toda a gente conhece: o relato da Criação, o Dilúvio, a passagem do Mar Vermelho, a mesa posta no alto do monte para todos os povos, o presépio, o Sermão da Montanha…

Quero dizer que, de toda a Bíblia — e quanto mais poderia acrescentar!: a figura de Job, Jonas e a baleia, os novos Céus e a nova Terra do Apocalipse… —, cenas há que, bíblicas ou não, pela sua grandeza ou monumentalidade, são, isso mesmo, bíblicas!

Mas poucos textos evangélicos exerceram e exercerão sobre o tempo cristão um fascínio tão grande como este do Juiz Supremo que separa as ovelhas dos cabritos, Mateus 25.

Na Idade Média, por exemplo, foi ele que levou a cristandade à lista das 14 obras de misericórdia. 7 ditas corporais, embora algumas seja de um tempo há muito passado: Dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, assistir aos enfermos, visitar os presos, e enterrar os mortos. E outras tantas ditas espirituais: Dar bons conselhos, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as injúrias, sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo, e orar a Deus per vivos e mortos.

Hoje em dia, todos percebemos, ao menos teoricamente, que a caridade é o campo de verificação da fé — ”a fé sem obras é morta” (Tg 2,17) — e que Mateus 25 é, em boa verdade, o compêndio da doutrina e das exigências de todo o Evangelho.

Mas isto acontece não só na teologia cristã. Também as grandes religiões do mundo são unânimes em reconhecer a importância e centralidade religiosa do núcleo deste texto ou do que ele contém: “A piedade não consiste em voltar o rosto para o Oriente ou para o Ocidente. A piedade está no que crê em Deus, no … que dá os seus bens por amor dele … aos órfãos e necessitados, aos viajantes e aos pedintes; que resgata cativos, que ora, que dá esmola, que respeita os compromissos, que é paciente na adversidade e nos tempos de violência… Esses são os justos e os que levam Deus a sério” (Alcorão 2,172). E Confúcio diz: “Quando não sabemos servir os homens, como é possível servirmos os manes [as divindades]?” (Conversações 11,11). “Revestir-se de mantos bordados, cingir espadas aceradas, comer e beber em demasia, acumular riquezas, tudo isso se chama roubo e mentira e não provém do Tao”, do Livro da Via e da Virtude, LIII, do chinês Tao-te-Ching.

Voltando a Mateus 25, ele é, certamente, o exemplo bíblico mais impressionante da entrada de Deus na história: ele sai-nos ao encontro no imanente, no temporal e no histórico, no humano. Para nós, a Palavra de Deus não passa muitas vezes de um texto carregado de história, é verdade, mas um texto de outro tempo, vindo de um passado longínquo e das cavernas da História. E, no entanto, é ele que nos leva não a um novo entendimento de Deus, mas a uma nova maneira de nos encontrarmos com ele. Hoje, como sempre, em todo o tempo, a realidade histórica é feita de dor e sofrimento, de pobreza, de fome e de sede, de abandono. Deus padece da dor do mundo e, por isso mesmo, o lugar da dor do homem acaba por ser o melhor da experiência do transcendente. Quer queiramos quer não.

É nos que cabem na designação que é dita por esta tão perigosa palavra, “os pobres”, que Jesus, o Cristo, particularmente se manifesta, pois que, como diziam os antigos, os pobres são a sua presença real na História.

Como pode alguém comungar do pão e beber do vinho da Eucaristia e menosprezar depois ou esquecer pura e simplesmente a presença real de Jesus nos “tus”, nos irmãos mais pequeninos e sofridos?

Chegamos hoje ao fim do Ano Litúrgico, durante o qual celebrámos todo o mistério de Cristo: da Incarnação à Cruz e à Ressurreição, isto é, à Redenção, revisitámos-lhe os passos, o ensino e os gestos, contemplámos a Criação, a História (a nossa História), a Vida e os Vivos, também a Morte e os que morreram, e, agora no fim, confrontamo-nos nós com os Fins. Para isso, há que praticar, levar à prática, que a fé sem obras é morta. Mas é das obras que se faz o Reino: de um planeta que se desfaz e que alguns — poucos — tentam salvar, da realidade da fome e da sede dos famintos e sedentos de justiça e de pão ou de trabalho, das dificuldades dos estrangeiros exilados dos seus países, dos marginalizados na e por uma sociedade de loucura e numa cultura de loucos, das dores dos doentes à espera de conforto e de saúde, da multidão dos encarcerados em prisões sobrelotadas, dos infernos suburbanos colocados mesmo ao lado de paraísos artificiais onde se morre de tédio, dos desempregados e dos iletrados de um mundo laboral só comparável ao dos meados do séc. XIX, voltado unicamente para o lucro da riqueza…

Por isso, em tempo que é de crise e até de perigo de existência, é necessário partilhar, porque há fome e há sede, para muitos não há que vestir nem onde viver, nem no planeta sequer que se desfaz …

Então, “O Rei dirá aos da sua direita: Vinde, benditos de meu Pai!… E em seguida dirá aos da esquerda: Afastai-vos de mim porque tive fome e tive sede, e estive na prisão…” e não me socorrestes.

A Liturgia nos dirá de hoje a oito: “O Senhor vos faça crescer e abundar na caridade para com os outros e para com todos” (1Ts 3,12). É a esperança cristã.

Arlindo de Magalhães, 25 de novembro de 2018