Quando, em 1925, o Papa Pio XI instituiu a festa de Cristo Rei, ele quis, por um lado, reagir deste modo a uma mentalidade que, ao tempo, pretendia confinar o religioso e o sagrado à esfera do rigorosamente individual e, por outro, combater os excessos do clericalismo que defendia o predomínio do religioso sobre uma justa autonomia das realidades terrestres.
Era, no fundo, a velha questão das relações Igreja/Mundo.
E a disputa estava bem acesa: estavam ainda vivas na memória de uns e de outros factos tão marcantes como o Syllabus de Pio IX (1864), que condenava toda a modernidade, a famosa encíclica Pascendi de Pio X (1907), que condenava o modernismo por ser o “conjunto de todas as heresias”, e depois o cartão vermelho mostrado ao movimento do Sillon (1910), que agrupava os cristãos que queriam a abertura ao mundo, e o verde levantado à Action Française de Maurras, o pai dos totalitarismos do século; no meio de tudo isto, a encíclica As Novas Realidades (1891), em que Leão XIII apelava ao respeito para com o mundo e suas realidades – e desde logo a “pobreza imerecida” -, o que levou muitos batizados e muitos setores da Igreja a rezarem pela conversão do Papa!
Neste contexto, a criação da festa de Cristo Rei apareceu como uma arma a defender o Antigo Regime e a recusar o mundo moderno (os mais velhos recordamos os tempos das “almas bravas de soldados” transportando bandeiras e cantando “clarins, vibrem clarins!”, sobretudo nas procissões). Mas o catolicismo moderno nunca teve grande devoção por esta festa de Cristo Rei.
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Mas os três evangelistas sinópticos dizem que Jesus foi crucificado, ele e mais dois homens. Marcos diz que eram dois ladrões (15,27); Mateus, dois salteadores (Mt 27,38), e Lucas, dois malfeitores (Lc 22,33).
Perguntam-se, hoje, vários historiadores se estes dois ladrões, também chamados salteadores ou malfeitores, eram, mas é “rebeldes políticos”!
Flávio José (30?-100), historiador judaico-romano, atento sobre aos movimentos anti-romanos do seu tempo, é de opinião que a morte de Jesus teve, de algum modo, algo de rebeldia política.
Pelo que os evangelhos contam, Jesus nunca causou motim político nenhum, nunca falou contra Roma ou a ocupação romana da Judeia, tão pouco da crueldade dos militares romanos, dos abusos fiscais ou da repressão militar.
É possível que o título de “rei” que lhe deram…
— Véspera da Páscoa, por volta do meio-dia. Disse então Pilatos aos judeus: ”Aqui está o vosso rei”.
Mas eles bradaram: “Fora, fora! Crucifica-o”.
Disse-lhe então Pilatos. “Hei de então crucificar a vosso Rei?”.
Replicaram os sumos sacerdotes: “Não temos outro rei senão César” (Jo 19,14-15).
O Direito romano tinha fundamentalmente dois pilares básicos: a defesa inviolável do direito de propriedade e a defesa do poder dos poderosos.
Mas esses pilares assentam nos antípodas da letra e do espírito de quanto Jesus viveu e ensinou.
Jesus queria afirmar que havia um “outro Mundo” a construir.
Um mundo não levantado sobre o poder e o capital, mas de honradez e de respeito pela igualdade dos direitos e garantias de todos os homens, um mundo cheio de bondade e capaz de ajuda aos que sofrem.
Nisso consiste o reinado de Jesus, que chocou e continua a chocar, 2020 anos depois, com todos os reinados do Tempo que passa.
Volto a Pio XI, que, como já disse, instituiu, em 1925, a festa de Jesus Cristo-Rei, pois quis foi exaltar o poder e a glória da Igreja e do próprio Papa sobre todos os poderes do Mundo. Depois da 1ª Guerra Mundial, um mundo a passar da Monarquia para a Democracia, do Campo para a Fábrica…, cantava-se assim:
«Abram alas, terra em fora,
Por entre frémitos de luz.
Deus nos chama, é nossa a hora,
Alerta pela Cruz!
Almas bravas de soldados,
Senhor, já surgem de além,
E há caminhos não andados
Que esperam por alguém.
Em nós, acendei em nós, ó Deus,
Flamas de um nobre ideal
Clarins, vibrem clarins,
Por amor de Portugal.»
Que tal?