O homem antigo vivia numa profunda ligação com a Natureza que lhe aparecia conduzida por leis mais ou menos misteriosas de fecundidade ou de esterilidade, de renovação ou de morte. Coisa verdadeiramente sagrada!, a Natureza. Renovava-se periodicamente, tornava-se episodicamente furiosa e vingativa, alimentava o homem ou deixava-o na penúria. Mas o homem primitivo pressentia Deus na Natureza, era o seu Criador e Senhor.
Por isso, se ofereciam, ano a ano, à divindade, os primeiros frutos que, com dificuldade, o homem encontrava na terra ou da terra arrancava. O homem primitivo foi, por isso, desde muito cedo, caçador ou pescador, depois, pastor e só mais tarde lavrador.
Oferecer a Deus as primícias da Natureza era, para o homem antigo, reconhecer a sua condição de criatura e fazer um ato de fé no Deus Criador, a quem pedia que o abençoasse.
Mas, se o homem primitivo colhia da Natureza – do mundo botânico (silvestre) ou do animal (caça) – o que precisava para comer, já a seguir, não, porque ele próprio passou a dominá-la. Os animais, alguns, esses domesticou-os, os campos cultivou-os e logo aprendeu a conservar e a guardar: os cereais, a carne, alguns frutos; logo aprenderia a fazer compotas e conservas, etc., e a guardar naquelas velhas arcas dos meus avós…, vinham ainda muito longe frigoríficos e outras técnicas…
Assim nasceu a festa da Primavera, da Natureza rejuvenescida: de tempos longínquos, nela se imolava e comia ritualmente, em família, um cordeiro. Com o cordeiro, comia-se pão ázimo, pão novo, sem fermento, feito com a primeira farinha da primeira colheita possível depois de longo e rigoroso Inverno.
Era a festa dos Ázimos (Ex 23,15). O Livro do Êxodo legislava minuciosamente: “Guardarás a festa dos pães sem fermento” (Ex 23,15). Mas o Deuteronómio era mais minucioso:
“tomarás as primícias de todos os frutos que colheres da terra e que o Senhor, teu Deus, te houver dado. Pô-los-ás num cesto e apresentá-los-ás no lugar que o Senhor tiver escolhido para aí habitar o seu nome [isto é, no Templo]. Apresentas-te ao sacerdote e ele receberá o cesto da tua mão e depositá-lo-á no altar de Iavé” (Dt 26,1-4).
Mas “o animal do rebanho[a comer] será sem defeito, macho, cria de um ano, cordeiro ou cabrito (Ex 12,5).
A atitude religiosa deste homem primitivo diz pouco ou mesmo praticamente nada ao moderno que somos, que nada sabemos já dos ritmos da Natureza: até à pouco havia sempre uma mercearia e, hoje, há sempre nem que seja um simples supermercado que, no nosso Primeiro Mundo, tem sempre tudo, peixe, fruta fresca e legumes com fartura, aconteça o que acontecer.
Mas, mesmo ainda no tempo antigo, tudo se complicou. “A fome era violenta em toda a terra”. Sabendo Jacob que havia trigo à venda no Egipto disse aos filhos: “Estais a olhar uns prós outros? Ouvi dizer que há trigo à venda no Egipto. Ide lá comprá-lo, para continuarmos vivos. Senão morremos! … e partiram a comprar o trigo no Egipto” (Dt 41,57 — 42,1-2).
Resumindo tudo: na memória histórica desta intervenção de Deus em favor do seu povo, entrariam depois José, filho de Jacob, Moisés e a fuga de Egipto, tudo acontecido no rebentar da Natureza (no campo e no rebanho), donde a festa do pão Ázimo (Ex 12,15ss), do pão sem fermento) e do nascimento dos “animais do rebanho” (Ex 12,3).
É aqui que assenta a festa da Páscoa judaica. Depois de uma (aparente e invernal) morte da Natureza, o Inverno, assim o povo que descende de um arameu errante (Abraão) ressurge anualmente na festa da Páscoa, que é a celebração da libertação histórica que Deus lhe inspirou e que o seu enviado – Moisés – encabeçou. “Mesmo depois de entrardes na terra que vos prometo, guardareis este rito (isto é, comereis um animal do rebanho, cordeiro ou cabrito, pães sem fermento e ervas amargas, Ex 12,8) e, quando os vossos filhos vos perguntarem ‘Que significa este rito?’, dir-lhes-eis: é a Páscoa do Senhor, que salvou as vossas casas e feriu o Egipto” (Ex 12, 26-27; Dt 16, 1-7).
O Deus de Israel não era apenas um Deus ligado aos ciclos naturais de fertilidade; era muito mais, era um Deus que estava com os sofrimentos do povo; e por isso o libertou. E esse acontecimento, verdadeira passagem de um estado de escravidão a um outro de liberdade, passou a ser celebrado com os mesmos ritos entranhados já no homem primitivo, o mesmo cordeiro, o mesmo pão sem fermento e as mesmas ervas amargas. Esta celebração fazia-se de noite, que de noite o povo fugira do Egipto: Esta é aquela noite!, Ó noite bendita!, cantaremos depois, na festa da Páscoa.
Mas não terminou ainda aqui a história da salvação. Na plenitude dos tempos, seria Jesus, enviado do Pai, a salvar o que estava perdido: quando o drama começou, era já de noite (Jo 13,30). E, quando morreu na cruz, inocentemente condenado, houve trevas em toda a parte (Lc 23,44), como se fora de noite. Esta é aquela noite!, Ó noite bendita!
Mas Deus ressuscitou-o (At 2,24; 3,15; 4,10: 5,30; 10,40; 13,30; 17,31; Rm 8,11; 10,9; 1 Cor 15,15; 2 Cor 1,9; 4,14; Hb 11,18, etc). E tudo isto juntamos na celebração da Páscoa: a morte e ressurreição de Jesus, e tudo o mais que está para trás, a Páscoa da Natureza e a gesta de Israel. E isto porque se Cristo não ressuscitou, é vazia a minha pregação e vazia a vossa fé (1 Cor 15-14). Exatamente por isso eu vos anunciei, antes de mais nada, o que eu próprio recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as mesmas Escrituras, e depois apareceu a Cefas e, a seguir, aos Doze (1 Cor 15, 3-4).
Como celebramos nós tudo isto? Com os mesmos ritos dos nossos antepassados: com cordeiro, não já do rebanho, mas cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, e com pão de trigo sem fermento, afinal a matéria de toda a celebração da Eucaristia, que, como dizemos todas as semanas na Anáfora, é memória da morte e ressurreição de Jesus.
Mas, para celebramos tudo isto, preparamo-nos. É a Quaresma.
Foi mau terem-nos metido na cabeça, no passado, uma Quaresma individualista: cada um prepara-se a si próprio, pela multiplicação de práticas mais ou menos penitenciais: jejum, abstinência (de quê?), confissão, via-sacra, conferências, etc. Cada um prepara-se, mas a Comunidade não se preparava, esperava antes que eles o fizessem. Mas é importante que a Comunidade o faça, porque a festa é da Comunidade.
Arlindo de Magalhães, 10 de março de 2019