De Jerusalém para o Mundo

RO40218422

Via Atos dos Apóstolos, de novo nos enfrentamos com o grande dilema da Igreja primitiva: ficar-se pelos judeus ou avançar para os territórios do paganismo? O caso de Paulo e Barnabé, lembrado hoje na 1ª leitura, não foi o primeiro: cristãos judaizantes dum lado, helenistas do outro. Nesta altura, já Estêvão tinha rompido com o Templo, o que lhe custou a vida (At 7), Filipe avançado para a Samaria, terra semipaganizada (At 8,4-13), etc. Hoje, Paulo e Barnabé estão em viagem missionária por terras pagãs, em Antioquia da Pisídia. Fiquemo-nos por aqui: no seu jeito, Lucas faz teologia narrativa.

Primeiro, os factos. Chegados à cidade, Paulo e Barnabé apresentam-se na Sinagoga, a pregar aos judeus, claro! Lucas descreve esta visita à maneira do que fizera com a de Jesus à Sinagoga de Nazaré (4,16-30). As coisas terão corrido bem pois que, uma semana passada, os mesmos Barnabé e Paulo voltam à Sinagoga, aonde “se reuniu quase toda a cidade para ouvir a Palavra do Senhor”. Só que…, desta vez os Judeus não ficaram lá muito satisfeitos com tão grande êxito: “encheram-se de inveja e responderam com blasfémias”. É então que os dois fazem uma declaração programática: “Era a vós [judeus] que devia ser em primeiro lugar anunciada a palavra de Deus. Uma vez, porém, que a rejeitais e não vos julgais dignos da vida eterna, voltamo-nos para os gentios, pois assim nos mandou o Senhor”.

Como se vê, a estratégia missionária de Paulo e Barnabé era a de, primeiramente, se dirigirem aos judeus. A decisão de se voltarem para os pagãos (gentios) viria depois. Isto é, caso tivesse havido uma aceitação significativa da parte dos judeus, Paulo não se teria decidido, a correr, a voltar-se para os pagãos. O que não quer dizer que, com a decisão de se dirigir aos pagãos, Paulo tivesse abandonado pura e simplesmente o cuidado prioritário dos judeus: de facto, logo a seguir (14,1), contando que os mesmos Paulo e Barnabé se dirigiram a outra cidade — Icónio, — a pregar, Lucas informa que eles se dirigiram “igualmente” (isto é, como de costume) à “sinagoga dos Judeus” (At 14,1). Paulo continuava a insistir na conversão dos seus compatriotas judeus. Mas como essa sua estratégia fracassa, Paulo e Barnabé não hesitam, avançam para os pagãos, o que já Estêvão e Filipe haviam feito antes deles. Isto sucedido, Lucas informa ainda: “os discípulos ficaram cheios de alegria e do Espírito” (13,52).

Para a contenda entre os que ficaram cheios de alegria com a estratégia primeira — os judeus — e a decisão posterior de Paulo e Barnabé de avançarem para os “pagãos”, pesaram, e muito, “algumas senhoras piedosas, as mais distintas da cidade, e os maiorais” (13,50) lá do sítio (as traduções, mesmo as oficiais, dão sempre uma voltinha ao texto para o tornar mais doce!), estes a incitarem os judeus à recusa da Boa Nova. É engraçada esta de ser a elite da cidade a dar gás aos judeus! Como sempre e hoje ainda, os do outro lado, os que “se encheram de alegria” foram os pobres!

Esta narrativa parece indicar a intenção de Lucas. É possível que ele não estivesse muito de acordo com a primeira estratégia de Paulo (ir ter com os Judeus) e que se tivesse alegrado com que os factos acabassem por empurrar Paulo e Barnabé para aquela que, a ele, Lucas, lhe terá parecido a melhor opção. A missão direta aos gentios, não subordinada à aceitação ou não aceitação dos judeus, representava para Lucas a vontade do Espírito Santo: para isso Paulo e Barnabé tinham sido escolhidos (At 13,2).

E há ainda indícios de que o próprio Barnabé pensava como Lucas e não como Paulo, como parece que os factos posteriores indicam: um pouco adiante, nos Atos (15,39), Lucas dirá de “uma discussão tão violenta entre os dois que se separaram um do outro”. E a questão foi ainda a de: se continuarem no quentinho (só entre os judeus) ou se avançarem mais, paganismo dentro. Mas isso já é outra parte desta mesma história… que fica para outra vez.

Esta questão daquele tempo é ainda de hoje: o terreno da Igreja é o Mundo, todo ele, ele e o seu Hoje: sem Tempo e sem Lugar, não há Igreja. Para ele, o Mundo, a Igreja tem de ser sinal ou sacramento de Cristo e do Reino de Deus que deve anunciar, inaugurar e celebrar. Não um Mundo adversário, mas um Mundo destinatário e interlocutor. Não gosto de ver a Igreja a falar ao Mundo só quando não está de acordo com ele. Mas há muito tempo que é assim. Foi assim com o iluminismo, com o Liberalismo, com a Modernidade, com a Questão Laboral, com a Democracia, com a República, com a separação da Igreja e do Estado, com o Cinema, está a ser assim com a pós modernidade, com a sociedade pós industrial, com a sociedade de consumo, com a globalização, com a camisinha, com as salas de chuto, com o aborto, com a eutanásia (a semana passada, o episcopado reunido em Fátima, a propósito da legalização da eutanásia), tal e qual, e tudo isto no mesmo saco. A Igreja [portuguesa] só sabe estar contra! Mas, afinal, estamos a favor de quê? Propomos e vivemos o quê? A Boa Nova de Jesus? O Reino de Deus de que nos dizemos sinal? Onde está a nossa esperança? Frei Bento, há 8 dias atrás, escrevia assim: “que a Igreja, na sua intervenção pastoral, abandone o inveterado mau gosto de lamentar e condenar”.

É fácil dizer que está tudo mal. Normalmente, quem o faz não está dentro, não se suja. Eu acho que muitas vezes é preciso estar contra, mas para estar contra é preciso saber fazê-lo; mas só saber estar contra é muito pouco.

«Em relação a estes acontecimentos, pode-se dizer que os Cristãos deste País, por um lado, não se interessam suficientemente e, por outro, andam demasiado preocupados como toda a gente. Interessados e desinteressados ao mesmo tempo, mas não ao modo como haviam de se interessar e de se desinteressar!… Quero dizer que aquilo que lhes mete medo não havia de lhes meter medo, e o que não os preocupa muito havia de os ocupar!… É que, em todos estes acontecimentos trágicos, dramáticos, porque carregados de perigos e de ameaças, de promessas e de esperanças, há o lado transitório, passageiro, provisório, e há também o outro Lado, a Dinâmica que já projeta o Presente, para o Futuro», dizia aqui mesmo o Pe Leonel em 1981.

Já nessa altura, o Concílio Vaticano II tinha sido muito claro: “o único fim da Igreja é o advento do reino de Deus e o estabelecimento da salvação de todo o género humano. E todo o bem que o povo de Deus pode prestar à família dos homens durante o tempo da sua peregrinação deriva do facto de que a Igreja é o sacramento universal de salvação, manifestando e atuando simultaneamente o mistério do amor de Deus pelos homens” (GS 45).

A este dizer podemos agora juntar Francisco, o Papa. “Que a Igreja anuncie o Evangelho a todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo” e que “vá ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos”, pois “que não se podem deixar as coisas como estão” (EG 23-25).

Mas nada disto se faz com umas procissões e uns misericordiosos painéis por aí espalhados: o ano passado, a lembrar tristemente a “alegria do Evangelho”; este ano, a misericordiosa misericórdia! Essas práticas são hoje “fósseis do Passado”!

Qualquer dia, Barnabé e Paulo… (vejam o que aconteceu, em At 15, 35-41).

Arlindo de Magalhães, 24 de Abril de 2016

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *