Deserto

Nancy Eckels

Desde o século III que, claramente, toda a experiência vivida no Deserto pelo Povo hebreu, sobretudo na saída do Egipto no regresso do exílio, e por Jesus na preparação da sua missão, está presente no espírito da Quaresma cristã. A Liturgia quaresmal faz-lhe continuamente apelo, convidando a Igreja a repetir essa experiência. Porque foi no deserto que Deus falou ao homem de modo muito especial.

Como lugar geográfico, o deserto é um lugar não abençoado por Deus: nele, a água é rara, tal como acontecia no Jardim antes que Eloim fizesse chover sobre ele (Gn 2,5). Nenhuma vegetação nele sobrevive, e é escusado tentar cultivar o seu solo.  Fazer dum país um deserto, através da guerra, por exemplo, é reduzi-lo ao caos de antes da intervenção criadora de IAVÉ. Este lugar desolado é o oposto da «Terra», tal como a maldição é o contrário da bênção. No deserto só habitam demónios e animais selvagens.

No entanto, o deserto não é só terra de desolação. É também um dos lugares privilegiados da História da Salvação.  Porque, se Deus fez passar o seu Povo por esta «terra medonha» (Dt 1,19), é para o fazer entrar numa outra «onde corre o leite e o mel». Este é um dos períodos capitais da história de Israel que dará ao deserto uma significação religiosa muito profunda. De facto, se é um lugar de desolação, é também o lugar onde, durante 40 anos, o Povo se formou e IAVÉ se lhe revelou.

No deserto, o Povo caminhou, caminhou — um deserto só se pode atravessar — caminhou o povo, a esperança no coração e os olhos em frente. A sua travessia não é fácil, mas é nele que recebe a Lei e que IAVÉ faz com o Povo a Aliança (Nm 1,1s).

Durante 40 anos, o Povo atravessou-o, é verdade. Mas como era dura a travessia! O abandonado Egipto até parecia um paraíso!: a comida abundante e a segurança um realidade (Ex 14,12). Não é verdade que o Povo se pôs contra o Deus da Libertação?

Muitos morreram na sua travessia. E, no entanto, ao povo que se queixa, Deus dá uma comida e água (Ex 15,25). Só pouco a pouco ele irá percebendo a «lógica» deste Deus.

Um dia, o Povo chegou à Terra Prometida, de facto «de leite e mel», e a sua vida prosperou. Tanto que, rapidamente se esqueceu de Deus e começou a adorar ídolos.

Ao tempo de Jesus, algumas comunidades de crentes fugiam de Jerusalém e refugiavam-se no deserto (é o caso por exemplo dos Essénios de Qumrân). O próprio João Baptista se acolhe a ele para aí proclamar a sua mensagem. E logo renova os corações com a água do batismo, enviando-os para a vida normal, a trabalhar (Lc 3,10/14).

Na perspetiva dos evangelistas, Jesus revive as diversas etapas do Povo de Deus. É para isso que o Espírito de Deus o leva ao deserto, logo no início, para aí o pôr à prova (Mt 4,1/11); e, aí, ele ultrapassa e vence a prova permanecendo fiel ao seu Deus.

De algum modo ainda, a figura do deserto ajuda-nos a compreender o que é a vida cristã, um combate e um lugar de passagem até que, finalmente, entremos no repouso de Deus (Hb 4,1). Temos, entretanto, a certeza da vitória porque o Cristo, que nos precedeu, nos abriu o Caminho.

Arlindo de Magalhães, 6 de março de 2019