A questão de Deus está presente em todas as páginas da Escritura, ele e a sua revelação a Israel. Disse Ezequiel (18,25): “Vós dizeis que a maneira de proceder do Senhor não é justa” (Ez 18,25).
Era injusto o Deus de Israel?
Dificuldade de Israel e nossa, a de acusarmos Deus quando qualquer coisa (parece que) não funciona. É também o nosso modo de o procurarmos, de nos interrogarmos sobre Ele: quem é Deus?, que é Deus?
Antigamente, o catecismo e a própria filosofia procediam pela afirmativa: Deus é um ser eterno, omnipotente e omnisciente, criador e senhor de todas as coisas. Mas este Deus morreu.
Foi Jesus que acabou com ele: Pai nosso (Abbá!) e Reino de Deus são agora duas palavras indispensáveis para entendermos o Deus de Jesus Cristo.
Diante de um Deus legal ou/e moral, fechado em normas e preceitos positivos, Jesus falou de um Deus que aponta o amor sem fronteiras e convidando-nos a que sejamos bons como Deus o é (Mt 5,21-48).
Diante de um Deus que se afirmava à custa do homem – e por isso o homem estava, por exemplo, ao serviço do Sábado (de Deus) – Jesus falou de um Deus que quer saciar toda a fome e toda a sede do homem, um Deus anti-mal para quem até o sábado está ao serviço do homem: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o Sábado” (Mc 2,2t ss).
Diante de um Deus com quem o homem unicamente se podia relacionar chamando-lhe “Senhor! Senhor!” e a quem devia oferecer sacrifícios sem se preocupar com o irmão, Jesus falou de um Deus que prefere a misericórdia, que exige a reconciliação e a fraternidade, cujo culto seja verdadeiro e o templo não se converta numa casa de bandidos (Mat 5,23-24; 7,21-23 e 21.12-17).
Diante de um Deus aferrado às tradições humanas (os que lavam as mãos antes de comer mas deixam passar o camelo e filtram o mosquito, etc) e passam ao largo do caído na valeta do caminho para não incorrerem em impureza, Jesus falou de um outro Deus que nos remete sempre para o fundamental, o Deus do bom samaritano, da honradez e da justiça, da sinceridade, da compaixão e da misericórdia (Mt 5,1-8 e 23,13-28; Lc 10.30-37).
Diante de um Deus de perdão que só podia ser utilizado sete vezes – Jesus falou do Deus do perdão sem limites, “setenta vezes sete”, isto é, “sempre” (Mt 18,21-22).
Diante do Deus que tolerava o serviço a outros mundos – dinheiro incluído -, Jesus reclamou a entrega exclusiva ao Deus verdadeiro abandonando todos os ídolos (Mt 6,24, 13-44-46, 19,16-24).
Diante do Deus do fariseu e do irmão mais velho do pródigo, que se apresentavam com créditos recolhidos e se julgavam com direito a desprezar os pecadores, o Deus de Jesus optou por estes últimos, publicanos e prostitutas, os perdidos e os que não contam (Mt 21,28-32; Lc 15,1-32 e 18,9-14).
Diante de um Deus do poder que se impõe e oprime, do triunfo que esmaga e deslumbra, o Deus de Jesus respeita o homem e a sua liberdade, possibilita e pede a resposta de uma fé livre e adulta (Mt 4,1-11, 12,38-40, 16,1-4).
Diante de um Deus dos sábios e entendidos, o Deus dos pequenos e dos simples (Mt 11,25); do Deus dos arrogantes e poderosos, o dos humildes (Lc 15,32); diante do Deus dos ricos, dos saciados e dos que se riem, o Deus dos pobres, dos famintos e dos que choram.
Podia continuar com as contradições mas fico por aqui. Jesus falou de um Deus Pai e seu Reino de que nos aproximaremos pelo amor pessoal e livre, pela bondade infinita, pelo amor fraterno, pelo perdão sem limites, pela misericórdia escandalosa, pela graça irritante que derrama sobre todos os homens. Ele apresenta-se como pai de todos mas proclama claramente a sua preferência pelos perdidos e pelos simples, pelos pecadores e pelos pobres. Um Deus escandaloso, conflictivo e exigente, mas ao mesmo tempo um Deus que declara a vaidade dos ídolos (chamem-se dinheiro, nacionalismo, o que for) e o valor do ser humano. Para este Deus de Jesus, a pessoa tem um valor único e nada pode ser feito contra ela, tão pouco a lei, o culto ou o sacrifício…
… por isso é que ele – Jesus, o Servo de Iavé, ontem e hoje – foi crucificado!
“Vós dizeis: a maneira de proceder do Senhor não é justa. Espera aí, Casa de Israel: será a minha maneira de proceder que não é justa, ou o teu modo de proceder que é injusto?” (Ez 18,25). Por isso é que “os publicanos e as mulheres de má vida irão diante de vós para o Reino de Deus” (Mt 21,32).
Arlindo de Magalhães, 1 de Outubro de 2017