Esta questão de Deus – do Criador ao Redentor – está presente em todas as páginas da Escritura, ele e a sua revelação a Israel: “Vós dizeis: a maneira de proceder do Senhor não é justa”. Dificuldade de Israel e nossa, a de acusarmos Deus quando qualquer coisa (parece que) não funciona. É também o nosso modo de o procurarmos, de nos interrogarmos sobre Ele: quem é Deus?, que é Deus?
O Pe. Congar, um dos maiores teólogos do Vaticano II, escreveu uma vez que “talvez a maior desgraça do catolicismo moderno tenha sido a de haver-se convertido numa teoria sobre o em si de Deus e da religião, esquecendo-se da dimensão do para o homem que o próprio Deus e a religião encerram. O homem e o mundo sem Deus com que nos enfrentamos atualmente nasceram em parte como reação contra esse Deus sem homem e sem mundo”.
Para que serve Deus ao mundo e ao homem? Parece que, na prática, Deus é mais facilmente abordável pela negativa que pela positiva. Antigamente, o catecismo e a própria filosofia procediam pela afirmativa: Deus é um ser eterno, omnipotente e omnisciente, criador e senhor de todas as coisas.
Mas esse Deus morreu. Digamos que Jesus acabou com ele: Pai nosso (Aba!) e Reino de Deus são agora duas palavras indispensáveis para entendermos o Deus de Jesus Cristo. Pai nosso, expressando assim a intensa relação que o próprio Jesus mantinha com ele e mantém connosco, e Reino porque a paternidade de Deus só tem sentido se nos aponta a vida nova de Jesus que nos falou com a sua vida e ensinamentos.
Perante um Deus legal ou moral, fechado em normas e preceitos positivos, Jesus falou-nos de um Deus que aponta o amor sem fronteiras, convidando-nos a que sejamos bons como Deus o é (Mt 5,21-48).
Diante do Deus que se afirmava à custa do homem – e por isso o homem estava ao serviço do Sábado (de Deus) e do Templo – Jesus falou de um Deus que quer saciar toda a fome e toda a sede do homem, um Deus para quem até o sábado e o Templo estão ao serviço do homem (Mc 2,23 ss.).
Diante de um Deus com quem o homem unicamente se podia relacionar chamando-lhe “Senhor! Senhor!” e a quem devia oferecer sacrifícios sem se preocupar com o irmão, Jesus falou de um Deus que prefere a misericórdia ao sacrifício e que exige a reconciliação e a fraternidade para que o culto seja verdadeiro e o templo não se converta numa choça num pepinal (Is 1,8).
Diante do Deus dos que viviam aferrados às tradições humanas (os que lavavam sempre as mãos antes de comer mas não se preocupavam com o mal que lhes saía do coração) e que passavam ao largo dos caídos na valeta do caminho para não incorrerem em impureza, Jesus falou de um outro Deus que nos remete sempre para o fundamental, o Deus do bem, da honradez e da justiça, da sinceridade, da compaixão e da misericórdia (Mt 5,1-8 e 23,13-28; Lc 10.30-37).
Diante do Deus do perdão calculado – até sete vezes? -, Jesus falou do Deus do perdão sem limites – setenta vezes sete, isto é, sempre (Mt 18,21-22).
Diante do Deus que tolerava o serviço a outros senhores – dinheiro incluído -, Jesus reclamou a entrega exclusiva ao Deus verdadeiro e o abandono de todos os ídolos (Mt 6,24, 13-44-46, 19,16-24).
Diante do Deus do fariseu e do irmão mais velho do pródigo que se apresentavam com créditos recolhidos e se julgavam com direito de desprezar os pecadores, o Deus de Jesus optou por estes últimos, publicanos e prostitutas, os perdidos e os que não contam (Mt 21,28-32; Lc 15,1-32 e 18,9-14).
Diante do Deus do poder que se impunha e que castigava, do triunfo que esmagava e deslumbrava, o Deus de Jesus que respeita o homem e a sua liberdade, que possibilita e pede a resposta de uma fé livre e adulta (Mt 4,1-11, 12,38-40, 16,1-4).
Diante do Deus dos sábios e entendidos > o Deus dos pequenos e dos simples (Mt 11,25); do Deus dos arrogantes e poderosos > o dos humildes (Lc 15,32); do Deus dos ricos, dos saciados e dos que riem > o Deus dos pobres, dos famintos e dos que choram.
Podíamos continuar com as contradições, mas ficamos por aqui. Jesus falou de um Deus Pai e do seu Reino de quem nos aproximamos pelo amor pessoal e livre, pela bondade infinita, pelo amor fraterno, pelo perdão sem limites, pela misericórdia escandalosa, pela graça incomodativa que se derrama sobre todos os homens. Ele apresenta-se como pai de todos mas proclama claramente a sua preferência pelos perdidos e pelos simples, pelos pecadores e pelos pobres. Um Deus possessivo e exigente, mas ao mesmo tempo um Deus que declara a vaidade dos ídolos (chamem-se dinheiro, nacionalismo, terrorismo, o que for) e a validade do ser humano. Para este Deus de Jesus, a pessoa tem um valor único e nada pode ser feito contra ela, tão pouco a lei, o culto ou o sacrifício, isto é, possa embora tudo isso apresentar-se enganosamente como seu serviço.
… por isso é que ele – Jesus, o Servo de Iavé, ontem e hoje – foi crucificado!
E diante de um Deus assim, nada nem ninguém, nem a letra da Lei, nem qualquer dos seus sacramentos ou sinais, a Igreja que seja, pode mais ou é mais que o significado, o próprio Deus.
Arlindo de Magalhães, 27 de maio de 2018