Discípulos

Ilda David’, Igreja S. Tomás de Aquino (Lisboa)

Depois de um breve prólogo (1,1-15) centrado na figura de João Baptista, nas tentações de Jesus e num primeiro sumário da sua pregação («o Reino de Deus está próximo, convertei-vos e acreditai na Boa Nova» — Mc 1, 15), o Evangelho de Marcos começa com uma relativamente longa narração da pregação de Jesus na Galileia (1,16 até 9,15). 

Esta narração dá conta de um crescendo de tensão contra Jesus. E ele, dirigindo-se aos discípulos, pretenderá como que clarificar as águas: «E vós, quem dizeis que eu sou?» (8,27).

Ou seja: a pessoa e a pregação de Jesus não eram pacíficas, levantavam problemas. 

Vejamos. Marcos diz que Jesus «chegou a casa» e, ali, «acorreu tanta gente» que «nem sequer podiam comer» (Mc 3,20-21). 

Jesus reunira já um grupo de discípulos (1,16-29 e 3,13-19). Era com esses que fazia vida e era esses que ele ensinava particularmente: tratava-se de um verdadeiro discipulado, até comia com eles. Sabemos como na igreja primitiva estas comidas em comum eram importantes. E sabemos também como a Igreja, posteriormente, perdeu esta tradição das comidas em comum (que no princípio antecediam sempre a própria celebração da Eucaristia). Pensam alguns hoje em dia que este deixar de comer em comum foi das maiores perdas da prática pastoral da Igreja, só comparável por exemplo com a perda do catecumenado. 

Mas voltemos ao assunto. Porque comia em comum com os discípulos e até com publicanos e «pessoas de má vida» (2,16), porque tinha já tomado outras atitudes menos convenientes, «os seus» acusam-no de estar maluco, «fora de si».

Chegado aqui, o atual texto de Marcos incluiu um acrescento posterior que refere «os escribas que vieram de Jerusalém», que radicalizaram a acusação já feita por «os seus»: chamam-no Belzebu (Mc 3,22). Eu vou traduzir esta palavra à letra, para toda a gente perceber: Belzebu quer dizer «um Baal [uma divindade da Síria] de m…». Claro que “quem não se sente não é filho de boa gente”: Jesus reagiu. Conta-lhes a história de uma casa (isto é, duma família) dividida no seu interior (3,25-28).

Acabada esta cena aqui intercalada (isto é, metida um bocado a martelo) retomamos o primeiro dos quadros. Ou seja, como acima dizia, «os seus», isto é, «tua mãe e teus irmãos», andavam à procura dele porque tinham recebido notícia de que ele andava pirado da cabeça. Vinham, muito naturalmente, repreendê-lo e dar-lhe bons conselhos. Aponta nesse sentido o facto de ele andar já metido com uns tipos no mínimo raros naquela terra, pescadores — um deles devia ser um estoura vergas, à letra Filho do Trovão (o nosso conhecido Tiago) — pescadores, gente com quem, ainda por cima, se sentava à mesa a comer. 

O que é que isto quer dizer? Quer dizer que os Doze são o núcleo da nova comunidade reunida à volta de Jesus. E isto não agradava à malta (como agora se diz) do seu partido e até da sua família. A história é velha. À volta de Jesus nasce uma nova família ou comunidade, como quiserem, que se levanta. Por isso, a cena acaba com esta palavra lapidar, dita com toda a autoridade: «Minha mãe e meus irmãos!… Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é minha mãe e meu irmão!» (Mc 3, 34-35).