(João 6,24-35)
Irmãos:
1. Do que aqui se trata, é do nosso desejo: do desejo, do corpo, da necessidade, da saciedade… do pão e do alimento. Que haverá de mais essencial, de mais quotidiano, de mais importante para a nossa vida, do que o alimento? E, neste caso, de nada adianta afirmar que as nossas preocupações são outras, mais «superiores» ou «espirituais» do que o simples alimento… na verdade, o que determina (na maioria das vezes, inconscientemente), o nosso dia-a-dia, as nossas acções e comportamentos, as nossas relações, as nossas defesas, os nossos conflitos, é o saciar das nossas necessidades vitais: o alimento, os afectos, a necessidade de reconhecimento, de aceitação, o sentido do nosso trabalho, das nossas convicções… tudo o que nos é humano.
2. De nada adianta apontar o sentido do nosso «ser cristão» para algo que esteja de fora destas realidades vitais: podemos afirmar que ser cristão é uma questão ética, de compromisso social, de prática sacramental, de participação comunitária, de reforma da Igreja, do Concílio… a tentação de separar estes compromissos – afirmados pela nossa mente e pela nossa boca – do que realmente constitui o nosso pão, o nosso alimento, o nosso trabalho, o nosso corpo, as nossas relações, o nosso quotidiano… quando a multidão (e os discípulos!) perguntam a Jesus: «como devemos trabalhar na Obra de Deus?», Jesus não responde com uma ética, um compromisso social ou eclesial; Jesus responde: «Acreditai naquele que o Pai enviou».
3. E aqui regressamos a um encontro pessoal, com Aquele que é o Alimento. É esta a linguagem do Pai-Nosso, quando diz: «Dá-nos o nosso pão de cada dia»; ou da Eucaristia, quando o Senhor diz, partindo o pão: «Este é o meu Corpo». Trata-se de uma transformação, de uma personalização das realidades vitais de cada um de nós; o membro de um casal transforma-se, humaniza-se, dia após dia, através do amor (do amor, do perdão, da súplica, do choro, da ternura) que o seu parceiro lhe tem. A pessoa é progressivamente transformada, no sentido da humanização, quando o encontro consigo mesma e com o seu dia-a-dia se dá numa lógica de aceitação, de perdão, de silêncio, de contemplação do outro. Naturalmente, o «pão» que nos é diariamente oferecido vai noutro sentido: o consumo plastificado, o excesso de informação alarmista (com a sua espiral absurda de comentaristas), a ‘lei da selva’ no mundo do trabalho, os canais e redes de entretenimento estúpido…
4. Há o risco de ler a recente encíclica de Francisco numa chave moralista, de compromisso ético ou moral, como algo exterior a nós (risco comum à leitura do próprio Evangelho). O «Cuidado da Casa Comum» é o cuidado pela nossa vida, unida aos irmãos e à natureza como uma Videira (João 15,1-8). As perguntas são dirigidas a cada um de nós, e eu calo-me na hora de dar uma resposta:
«Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer? Esta pergunta não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada, porque não se pode pôr a questão de forma fragmentária. Quando nos interrogamos acerca do mundo que queremos deixar, referimo-nos sobretudo à sua orientação geral, ao seu sentido, aos seus valores. Se não pulsa nelas esta pergunta de fundo, não creio que as nossas preocupações ecológicas possam alcançar efeitos importantes. Mas, se esta pergunta é posta com coragem, leva-nos inexoravelmente a outras questões muito directas: com que finalidade passamos por este mundo? Para que viemos a esta vida? Para que trabalhamos e lutamos?» (n. 160)
5. Há um Pão que nos é oferecido: Ele é de Graça, Ele é Graça. Que a nossa vontade de trabalhar na Obra de Deus não nos afaste d’Ele, dos nossos irmãos, de nós próprios. Afinal, será Ele o nosso Alimento. Que o nosso desejo por Ele nunca se perca nem diminua.
Rui Pedro Vasconcelos, 2 de Agosto de 2015
(imagem: mosaico bizantino da Igreja da Multiplicação dos Pães e dos Peixes, Tagbha, noroeste do mar da Galileia)