O felix culpa! Ó feliz culpa! Quantas vezes cantei eu isto, primeiro na Catedral do Porto, depois em Balteiro, a seguir aqui na Serra do Pilar, na Vigília Pascal: anos sem conta! O felix culpa!, mas pensando sempre e só no pecado de Adão, o tal que tão grande Redentor mereceu ter!
Porque há coisas que a gente só aprende com a idade. Melhor digo: que a gente só aprende depois da experiência do desastre, do pecado, da limitação e da crise. Assim é que é. Comecei a perceber isto quando me dei conta que os pecados são sempre os mesmos, os meus e os nossos, desde o princípio.
Desde então, estão todos escritos no Novo Testamento: em Corinto e em Éfeso, em Jerusalém e em Antioquia, em Filipos zangaram-se Evódia e Síntique (Fl 4,2), Paulo e Barnabé foram um para cada lado (At 15,39), o mesmo Paulo resistiu na cara a Pedro (Gl 2,11), que era o chefe e o que tinha as chaves, Tiago cedia aos judaizantes contra os gregos da diáspora (At 15,13-21), Diótrefes em desacordo com os discípulos de João (3 Jo, 9-10), obristas contra fideístas (a fé sem obras é morta e o justo vive da fé, Tg 2,14), os que se embriagavam e enchiam dum lado e os que morriam à fome do outro, os ricos que não pagavam o salário aos trabalhadores (Tg 5,1.4) e os que não trabalhavam mas depois queriam comer como os outros (2 Ts 3,10); e se a gente entrasse um dia a sério no mundo das comadres da 1ª Carta a Timóteo (4,7), ó meu Deus!, o que a gente lá descobriria!
Esta lista podia nunca mais acabar. Mas já então era assim! E a gente a pensar que, no princípio, tinham todos um só coração e uma só alma (At 4,32), aquilo era um mar de rosas! Há coisas que nós, os que somos feitos de húmus, os humanos, não perdemos nem perderemos. Porque somos todos frágeis: frágil, sinto-me frágil!, cantava o poeta. Porquê, meu Deus?, porque é que não há nada de definitivo?, porque temos de ser uns eternos retornas?
É assim na vida da gente, na casa da gente e na comunidade da gente: sempre a pecar (pecar quer dizer tropeçar ou, mais exatamente, baralhar os pés: pecar e pé têm a mesma raiz, ped) e sempre a recomeçar. E só estamos velhos quando não formos mais capazes de voltar ao princípio.
Por isso é que podemos fazer e acontecer, brilhar e cair, quase desanimar e chorar, tocar o sino e passar montanhas, entregar o corpo às chamas e conhecer toda a ciência; mas se não tivermos amor… (1Cor 13, 1-13). Posso ter tudo, fazer tudo, ser o maior pecador e o maior virtuoso; se não tiver amor…, nada!
Paulo em Corinto: bebedolas e comilões, prostitutas e travestis, ricos e pobres, incestuosos e espirituais, chefes e sábios, putos em Cristo que ainda só sabem mamar, côdeas nem vê-las, gente que alimenta rivalidades e contendas mas se pretende sábia, forte e honrada…; se não houver Caridade…
É isto que celebramos hoje: a Caridade. Por isso nos sentamos à mesa, por isso lavamos os pés uns aos outros, para que como eu fiz, façais vós também. Porque o servo não é maior que o Senhor. E se eu, que sou o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros (Jo 13,14-16).
Meus irmãos: não tenho mais nada para vos dizer. Já disse tudo, já ensinei tudo o que sabia, já experimentei, tentei, organizei, comecei… E já re-ensinei, re-experimentei, re-tentei, re-organizei e re-comecei. E agora, como o João das cartas, já velho, só sei dizer: Amai-vos uns aos outros, amemo-nos uns aos outros…
É impossível meter na cabeça dos outros o que eu quero, penso, imagino, me ensinaram, ou sei lá o quê. Isso é impossível. Possível é amar-nos uns aos outros, suportar-nos uns aos outros e perdoar-nos mutuamente, mesmo que tenhamos razão de queixa contra alguém. Fazei como o Senhor, que nos perdoou. E, acima de tudo, revesti-vos do amor, que é o laço de perfeição (Cl 3,-14). Digo-vo-lo com o Hino da Caridade da Carta aos Coríntios na mão.
Arlindo de Magalhães, 24 de Março de 2016