“O justo vive da fé” (Rm 1,17), escreveu S. Paulo aos romanos: está na Escritura. Exatamente como lá está, não há dúvida: a Escritura, diz Lutero, não necessita de ser ilustrada, nem esclarecida, seja pelo que for, seja por quem for, a Escritura diz e está dito que “o justo vive da fé”. Ponto final parágrafo.
Por isso, entre o Homem e Deus, não é necessária mediação alguma. Não há nenhum sacerdócio especial (papas, bispos, cardeais, cónegos, abades, curas, reitores e capelães, etc), basta o que difere um presbítero de um batizado. Não precisamos nem de um ”papa romano” como não precisamos de tantos sacramentos, bastam o Batismo e a Eucaristia. De mais nenhum fala a Escritura. O “sacrifício da missa” — eu de facto aprendi na catequese que a missa é a “repetição incruenta do sacrifício da cruz”! — é a mais grave e horrível invenção que apareceu na Igreja romana, quando basta a Eucaristia, a celebração da ceia, em recordação da paixão e morte do Senhor. Nada de missas e missinhas por tudo e por nada.
Com tudo isto e muito mais, estava já aberta a porta ao “livre exame”, que afirmava que todo o cristão era livre de interpretar a Escritura.
E com isto Lutero tentou limpar do mundo eclesial tudo o que lhe pareceu que estava a mais. Digamos que quase em tudo tinha razão; mas não foi capaz de controlar a velocidade com que tudo aconteceu.
Posso contar, por exemplo, porque é que ele se casou, tinha já 37 anos? Ensinava que o casamento é um mandamento absoluto e universal de Deus, uma necessidade da natureza humana. Mas ensinava também que o casamento não era um sacramento, não constava na Escritura. Para ele, o casamento competia ao Direito civil, não ao eclesiástico. Então…, Se é como dizes, porque não te casas? Instado por alunos e amigos, resolveu-se. Casou e teve 6 filhos, 3 rapazes e 3 raparigas.
Lutero lutou por uma Igreja limpa, e não institucional. A Igreja do seu tempo, aquela que ele conheceu quando foi a Roma e aquela outra, mais política que religiosa, da sua Saxónia, estava cheia de lixo.
Lutero quis fazer o que, muito mais tarde, João XXIII tentou quando surpreendeu o mundo e lhe disse que reuniria um Concílio ecuménico nestes termos: “Vou abrir a janela da Igreja para que possamos ver o que acontece do lado de fora e para que o mundo possa ver o que acontece na nossa casa”
Lutero era um homem profundamente religioso, espiritual, na linha da melhor tradição germânica (são do seu tempo grandes figuras com quem contactou: Erasmo, Eck, Hus, Muntzer, Melanchthon, Zuinglio, …), muito mais religioso que todos os papas, bispos e padres do seu tempo, todos juntos. Soube testemunhar o Evangelho com força e convicção, génio verdadeiramente vulcânico e arrasador (“eu não faço nada a meias”, dizia).
Tinha defeitos? Sim, tinha. Primeiro, era alemão, embora ainda não houvesse propriamente uma Alemanha (no seu tempo havia uma Saxónia composta de tribos germânicas), sofria de um egotismo exagerado: tudo nele era filtrado pelo EU, livre e independente, verdadeiro “imperialismo do sujeito”; só o seu ponto de vista lhe parecia certo e verdadeiro, critério da Verdade. Mercê desse subjetivismo foi um radical. “Doctor hiperbolicus” lhe chamou Erasmo que também o disse “capaz de grandes intuições”.
Harnack (1851-1930), teólogo e historiador alemão do século passado deixou escrito que “o orgulho de Lutero consistiu em ter sido mais sério que os seus contemporâneos. Lutero deu sobejas provas de humildade. Houve também, é certo, um Lutero arrogante e provocador. Mas, numa época em que a violência era de regra e a grosseria reação corrente, que esperar de Lutero depois de o Núncio Alexandro (1480-1542) o ter mimoseado com extrema violência e grosseria chamando-lhe novo Ario, basilisco, novo Maomé, Satanás, cão, assassino e animal…”?
Lutero reagiu e ultrapassou os seus adversários num crescendo inaudito. E quanto mais o atacavam, mais ele se opunha à igreja romana.
Arlindo de Magalhães, 18 de novembro de 2017