A fé do povo bíblico assentou, nos seus princípios, na luz que lhe vinha do passado, guardado na Lei e na Tradição. Resumia tudo numa conhecida expressão: “o Deus de nossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob” (2 Cr 20,6; Esd 7,27, etc.), esse Deus autor das maravilhas operadas na História do seu passado, tempo ao longo do qual IAVÉ — esse Deus tinha nome — se foi revelando. Isto dito de outra maneira, na história bíblica anterior aos profetas, Israel regia-se pelos parâmetros do antigamente.
Foi Isaías quem começou a mudar-lhe a perspetiva: voltou-se para o Futuro. As necessidades e as urgências do Presente começaram então a perceber-se à luz do Futuro e não do Passado, do tempo em que emergiriam os novos céus e uma nova terra. O Passado não mais seria lembrado, mas sim a alegria e a felicidade do que Deus haveria de criar (Is 65, 17/18). Começou a falar-se do Reino de um Messias que haveria de nascer. Por isso – gritava Isaías –,
“Não torneis a recordar os factos de outrora, nem volteis a pensar nas coisas do passado. Olhai! Vou fazer algo de novo: já começa a aparecer, não vedes? Eu vou abrir um caminho no deserto e fazer correr rios na estepe. Os animais selvagens, os chacais e as avestruzes hão de glorificar-me, porque eu hei de fazer brotar água no deserto e rios na terra árida, para dar de beber ao meu povo, o meu povo eleito, o povo que eu formei e que há de proclamar os meus louvores” (Is 43,19-21).
Esta nova perspetiva introduzida na História da Salvação, passados alguns milénios, continua a custar à Igreja muito sacrifício, tanta dor e tamanha renúncia. Mas, exatamente por isso é que “o cristão não pode portar-se como os que não têm esperança; porque a salvação é a esperança em ação, a paixão do Possível. E o cristão é um profeta do Sentido. A Fé que eu mais amo é a Esperança” – disse um dia o Bispo do Porto António Ferreira Gomes.
Por tudo isso, na liturgia cristã como que se redimensiona o tempo. “Já e muito” é o que hoje interessa na civilização envolvente. Não é assim para o cristão: o presente constrói-se não a pôr de lado o passado, mas a edificar e antecipar o futuro. Por isso, a Liturgia é, como repetidamente disse o Vaticano II, ponto de chegada e ponto de partida, cume e fonte de toda a vida da Igreja. É esta palavra que deixo hoje, no início deste Advento e deste ano pastoral. Não renegamos nada do nosso passado, nada esquecemos dele. Nem o melhor nem o pior.
Mas não vamos mais recordar os factos de outrora, como não vamos mais deixar-nos manietar pelas coisas do passado. Vamos fazer algo de novo, hoje como ontem, mas agora diferente, “que já começa a aparecer, não vedes?”. Vamos correr os riscos do Futuro, porque não estamos amarrados a moldes estafados. De pés assentes nesta terra, e amando-a, vamos inspirar-nos na realidade do Reino para que caminhamos. Sem perdermos de vista nenhum dos irmãos, vamos deixar “que os mortos enterrem seus mortos” pois que “quem olha para trás depois de deitar a mão ao arado não é apto para o Reino de Deus” (Lc 9,60-62). Assim Deus nos ajude e nós dêmos as mãos!
Arlindo de Magalhães, 29 de Novembro de 2015