“Um homem rico vestia-se de púrpura e linho fino e banqueteava-se esplendidamente todos os dias. Um pobre, chamado Lázaro, jazia junto do seu portão, coberto de chagas. Bem desejava ele saciar-se do que caía da mesa do rico!”.
Não é fácil ler a parábola do homem rico e do pobre Lázaro: “ignorar estas realidades seria tornarmo-nos como o rico que fingia não conhecer o pobre Lázaro que jazia junto do seu portão” (A solicitude Social da Igreja, encíclica de João Paulo II, de 1987, 42).
São enormes os problemas que se deparam em todo o mundo, a nível da consciência individual e das políticas nacionais e globais. De um lado, as questões do desenvolvimento, da pobreza e da exclusão social, da educação, do aumento da criminalidade, da ruptura dos laços familiares, da transformação do papel da mulher, da revolução levada a cabo pela tecnologia ao mundo do trabalho, da desafeição popular pela política a que se juntam os apelos por uma profunda reforma democrática, e ainda as múltiplas questões sobre o ambiente e a segurança que requerem acções concertadas a nível mundial.
Do outro, a necessidade de apoiar valores como a fraternidade (a que hoje se chama solidariedade) e a justiça social, e a urgência de abandonar quer a velha ideia de um Estado controlador, coletor de impostos pesados mas que defende os interesses ora dos cidadãos ora dos produtores, quer a de um Estado defensor de um individualismo egoísta na convicção de que os mercados livres são a solução para todos os problemas.
Nós, os cristãos, temos algumas coisas a ver com isto?, ou isto é só com os profissionais da política e os técnicos da economia? A fé é só a aceitação de umas determinadas verdades (Creio em Deus, Pai todo poderoso…), uns dogmas e doutrinas, ou também uma forma de viver, a que nos ensinou Jesus de Nazaré na trajetória de toda a sua vida? A fé não está nos livros, nos papéis, nos documentos, nas doutrinas, mas nas pessoas, isto é, na vida. Somos seguidores de Jesus ou seguimos acriticamente a mentalidade única do sistema de pensamento único?
Um dia, no longínquo ano de 1511, Frei António de Montesinos (?-1540) surpreendeu os colonizadores espanhóis da ilha La Española (hoje República Dominicana) com este sermão:
“Estais todos em pecado mortal, nele viveis e morreis, pela crueldade com que tratais estas gentes inocentes. Dizei-me: com que direito e com que justiça sujeitais estes índios a tão cruel e horrível servidão? Com que autoridade empreendeis horrorosas guerras contra estas gentes mansas e pacíficas que ocupavam as suas terras cujos recursos agora destruís com chacinas e depredações? Como as mantendes presas e esgotadas, sem lhes dardes de comer nem cuidardes das doenças que lhes advêm dos excessivos trabalhos com que as sobrecarregais e das quais lhe resulta a morte, ou antes, dos trabalhos com que as matais na mira de apanhar sempre mais e mais ouro? Que cuidado pondes em que sejam evangelizadas e conheçam a Deus, seu criador, sejam batizadas, ouçam missa, guardem as festas e os domingos? Não se trata de homens? Não têm eles alma racional? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Não entendeis isto?”.
Frei Bartolomeu de Las Casas (1474-1566) estava lá e ouviu o sermão. Converteu-se então à causa da defesa dos índios, atacando na sua Brevíssima relação da destruição das Índias os descobridores da América com seus crimes, abusos e violências, dizendo-os escandalosos e exagerados, e não conseguindo — ele — evitar a continuação de tão grande chacina.
Vem aí um terceiro daquele mesmo tempo (1514-1590) — chamava-se Bartolomeu dos Mártires — era português. Veremos!
Mas a verdade é que cada um de nós tem de se perguntar em que medida, com ações ou omissões, contribui para estabelecer, manter ou acrescentar estas estruturas de pecado.
Arlindo de Magalhães, 29 de setembro de 2019