Quem não sai do sítio e da situação que o sitia, quem não levanta os olhos do chão onde morre, não percebe as dimensões do mistério de Cristo. É preciso sair dos sítios e das situações que não levam a nenhuma saída, que não realizam nenhuma vocação, que não contribuem para nenhuma obra digna desse nome.
Foi por isso que Abraão, de Ur, da Caldeia; Moisés, do Egipto do Faraó; Elias, do Israel do tempo do rei Acab, etc, todos eles fugiram dos lugares onde estavam, rompendo com o “estado de sítio” que lhes retinha as vidas. Piraram-se!
Abraão, sabemos, procedente de Ur, na Caldeia, terra onde nasceu a História e vivia o povo mais culto de então, onde funcionaram os mais antigos tribunais e parlamentos que a História conheceu, onde se elaboraram as primeiras legislações sociais, e onde a técnica nascente atingiu, ao tempo, um altíssimo grau de desenvolvimento, Abraão ouviu a voz de IAVÉ, “o Senhor”, um Deus desconhecido para ele: – “Deixa a tua terra natal e da Casa de teu Pai e vai para a terra que eu te vou mostrar. Farei de ti um grande povo” (Gn 12,1/2). E ele partiu.
Seguiu-se-lhe Moisés. Estava retido na corte do faraó, mas viu a opressão do seu povo exilado no Egipto e escutou o seu clamor” (Ex 3,7); depois de muito hesitar, fugiu também com o povo atrás de si; e se começou por matar um egípcio (Ex 2,11-14) acabou a lançar ao mar os carros de guerra do faraó e todo o seu exército (Ex 15,4). Mesmo assim, haveria de morrer às portas da terra prometida, mas não alcançada.
Depois Elias, o Profeta com letra grande, mas que não escreveu, mas que teve que enfrentar o rei e as fúrias da rainha, e teve também de se esconder e fugir para não ser morto (1Re 19,1-8).
Apesar das promessas que Iavé lhe fizera, Israel nunca conseguiu ser a “terra dos vivos” que deveria ser, e, por isso, entrou em conflito com os profetas: a uns maltratou-os, a outros matou-os, a outros ainda expulsou-os; e eles tiveram de fugir e de se defender.
Mas tudo isto foi necessário para chegarmos ao Êxodo irreversível, à Páscoa última, a de Jesus. Porque a de Jesus carrega um pouco ou um tudo das páscoas ou passagens de Abraão, de Moisés e de Elias.
(Saltando a 2ª leitura,) No texto de Lucas, mais mistérico que episódico, aparecem os três, de novo, não como fantasmas do passado mas como pessoas vivas encontradas com o único que dá sentido aos seus próprios percursos; ele é o Cristo transfigurado, isto é, o ressuscitado avant la lettre; eles são Abraão – o pai na fé de todos os crentes, Moisés – o da primeira Páscoa, Elias – o príncipe dos Profetas de Israel. O primeiro, Abraão, foi grande pela fé com que saiu de Ur à procura de uma Terra Nova, o segundo, Moisés, pela coragem em enfrentar as causas da injustiça e da opressão, Elias, o que enfrentou os esbirros do Poder. Três figuras incontornáveis do percurso histórico do antigo Israel: o homem da fé contra toda a esperança (Abraão), o homem da coragem diante da opressão (Moisés) e o homem que enfrentou o ímpio rei Acab e sua pérfida esposa Jezabel.
Quem são as testemunhas deste encontro? Os três privilegiados amigos do Jesus, Pedro, Tiago e João. Pedro, nome que se traduz melhor por calhau, duro e firme, que por pedra – foi o Cabeça; Tiago, o primeiro (dos Doze) a cair em testemunho da fé (At 12,2), assassinado por mandato de Herodes logo no ano 43 da era cristã; e João, irmão de Tiago, um dos mais próximos e sintonizados com o Mestre, o tal que na manhã da ressurreição, correu com Pedro para o túmulo quando lhes disseram que o Senhor ressuscitara. E quando chegou, esperou que arribasse o velhote (Jo 20, 3-8). Então, concordaram os dois e começaram a crer” (Jo 20,8)
Digamos que está nestas seis figuras toda a história anterior e posterior: os anteriores, que levaram até ao Cristo (Abraão, Moisés e Elias), a posteriori, Pedro, Tiago e João que viram. E no centro o ressuscitado.
Depois deste enquadramento “histórico”, digamos assim, dum lado as três grandes figuras do Antigo Testamento, do outro as outras três que num momento particular da Igreja apostólica emergiram com particular relevo, o episódio evangélico termina abruptamente. Diz o texto que, depois, Jesus ficou sozinho. No fim de narrar este momento, João diz que malta queria fazer Jesus “rei mas ele se retirou sozinho, para o Monte (6,15)
Dizem alguns comentadores: para ele devem olhar a Igreja e os crentes.
Maria, se tem estado lá, tinha certamente repetido o que dissera em Canã da Galileia: “fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5).
Arlindo de Magalhães, 17 de março de 2019