Irmãos e irmãs na fé em Jesus Cristo, Aquele que incarnou e se fez humano no Natal. No entanto, apesar de ser o autor de tudo e possuir todo o conhecimento, seu Pai quis que nascesse de uma mulher e que numa família crescesse, aprendesse e se fizesse verdadeiramente homem. Porquê?
É com imensa gratidão que Vos falo. A Liturgia fala-nos e pede-nos uma reflexão sobre a família. Com poucos méritos e fraca palavra procurarei motivar essa reflexão, assim o Espírito Santo me ajude.
Sou uma coisa estranha, como são estranhos os híbridos de qualquer espécie. Porquê híbrido? Tenho 54 anos. Quase 40 de vida em serviço à Igreja. Sou casado. Feliz na maior parte dos dias. Tenho a graça de ter por esposa uma mulher que está sempre à minha frente no serviço, na dedicação e no entusiasmo. Tenho dois filhos, um casal. Ambos, em diferentes serviços estão comprometidos na Igreja, por vontade própria.
No meu B.I. poderia acrescentar ao nome o título de Leigo. Com verdade e propriedade. Não há padrões estabelecidos para definir uma família cristã, mas se os houvesse, acho que os cumpríamos todos.
Ao mesmo tempo, sou clérigo. Sou diácono há cinco anos. Em título, porque se os frutos identificam a árvore, diácono, do grego servidor, é todo aquele que serve. Terei por isso diante de mim vários e várias que na prática do dia a dia servem a humanidade construindo o Reino de Deus nas mais diversas tarefas.
Clérigo casado. Na Igreja Católica Romana é uma figura estranha, um híbrido, uma mistura, que por isso ainda não é bem aceite e devidamente considerada na Igreja instituição.
A vocação do presbítero nasce normalmente na família. O panorama atual das vocações consagradas permite-nos avaliar a fecundidade da família cristã num dos seus papéis, o de gerar e dar à luz pastores para o Povo de Deus.
A vocação diaconal nasce na comunidade. Permite avaliar a saúde da comunidade, o seu grau de comunhão e espaço de fraternidade, a capacidade de motivar alguns dos seus membros a dedicarem uma parte importante das suas forças e do seu tempo ao seu serviço.
Mas o que é um diácono? Quando aparecem, porque desapareceram, porque foram de novo enxertados no Concílio Vaticano II e que sentido fazem hoje? É conversa para outra ocasião.
A família. Clérigo casado? O diácono empenha toda a família no seu serviço, e por simpatia, por empatia, no melhor dos casos por telepatia e algumas vezes com apatia, esposa e filhos são expostos e julgados por atos e palavras para os quais não concorreram. O diácono tem uma palavra a dizer, se o quisessem ouvir, sobre o celibato e o padre casado. Porque está sempre confrontado com a exigência da disponibilidade, o exercício da vocação e o confronto com a realidade de ser um dos pilares da sua família. Com o facto de ser ministro ordenado, mas necessitar absolutamente da estabilidade profissional que lhe garanta o ordenado. Os padres e os bispos discorrem muito sobre a família, mas a partir do que observam e ouvem. Quem tem esposa e filhos e lhes sente à vez a doçura ou a acidez, e no tempo atual cada vez com mais veemência, não são eles. Outra conversa que não é para hoje.
É por isto que me sinto um “traçadinho”, uma mistura de clérigo e leigo. E nesse sentimento também tendes responsabilidade e daí a minha gratidão. Aceitastes-me no vosso Catecumenato e por isso posso dizer que fui leigo, fui clérigo e a seguir aprofundei a minha condição de leigo refletindo sobre ela na companhia de onze de vós num caminho que todos deveríamos fazer urgentemente.
Obrigado.
A Palavra de Deus que escutamos hoje é contraditória. Provoca-nos como quase sempre. Na primeira leitura, Ben Sirá, um dos poucos autores conhecidos dos livros sagrados, dois séculos antes do Natal e sem nunca utilizar a palavra família, exorta-nos a cultivar relações humanas de amizade e respeito mútuos com aqueles que o acaso do sangue nos fez relativos: pai, mãe, filhos.
- Paulo prossegue nessa linha. Com conselhos práticos, sem nunca usar a palavra família, alarga as relações aos outros e chama as esposas. A tríade inicial pai mãe e filhos abre-se em árvore e forma novos pais a partir dos filhos que assim prolongam a criação e o ciclo da vida renova-se. Apresenta-nos Jesus como exemplo e alerta que a oração e a gratidão a Deus deve guiar a nossa ação humana.
No Evangelho, Jesus estraga tudo.
Imaginem por um instante a cena no tempo atual: Jesus, dono de uma sabedoria que desafia os doutores, não hesita em desprezar o Ben Sirá. Em vez de amparar o pai e confortar a mãe, deixa-os partir e fica para trás. José e Maria passam um dia sem O verem, mas não estranham. Só depois começam a procura-Lo. Podemos imaginar que à imagem da maior parte dos nossos casais, a busca não terá sido cordata:
– Maria, a culpa é tua. Como pudeste estar desatenta ao menino?
– José, se não fosses na conversa com os teus amigos, terias dado pela falta dele.
E os amigos:
– Que ricos pais, que assim perdem os filhos…
E ao fim de três dias à procura, (não havia telemóveis) finalmente vão encontra-Lo no local por onde deviam ter começado a busca.
E o final está-se mesmo a ver: por denúncia anónima, a Comissão de Proteção de Menores, sempre lesta e atenta, retira-lhes o menino e coloca-o num Centro de Inserção e declara-os incapazes de exercerem o papel de progenitores.
Alguém tem dúvidas?
Em que ficamos?
A família está em crise? Não. Em crise estão as relações humanas.
Jesus alarga as relações ao mundo, ao conhecimento do outro, à troca de ideias, ao diálogo. O seu projeto é criar uma grande família. O diálogo com a mãe é um choque de realidade:
– Ainda não chegou a minha hora. Se quero construir uma grande família, tenho de começar por colaborar na construção da minha. E assim foi crescendo. Até Canaã.
Não podemos escolher a família. Mas podemos escolher os amigos. Ah, mas se o parentesco obrigatório assentasse na amizade livre não haveria crise na família. E a amizade constrói-se com relações humanas sólidas. De respeito, de fidelidade, de tolerância, de delicadeza, de bondade.
Acho que já falei demais.
Vou continuar, mas nem sempre é fácil, a procurar ser o melhor amigo dos meus filhos e da minha esposa e peço-vos que façais o mesmo.
Obrigado.
José Luís, Diácono, 30 de dezembro de 2018