Hélia Correia

O Prémio Camões foi atribuído no passado dia 17 a Hélia Correia, que o recebeu como uma ‘eleição entre pares’. Partilhamos um texto autobiográfico, publicado no Jornal de Letras em 2005, e dois poemas.

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32.
De que armas disporemos, senão destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia de polis, resgatada
De um grande abuso, uma noção de casa
E de hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do qual virá a colecção dos feitos
E defeitos humanos, um início.

33.
Estão as praças,
Como ágoras de outrora, estonteadas
Pela concentração dos organismos,
Pelo uso da palavra, a fervilhante
Palavra própria da democracia,
Essa que dá a volta e ilumina
O que, por um instante, a empunhou.
Oh, os amigos, os abandonados,
Esses, os destinados ao extermínio,
Esses os belos despojados, nus,
Os que, mesmo nascendo no Inverno,
Pouco sabem do frio, gente que dorme
Na sombra do meio-dia, ouvindo o canto
Das cigarras, o canto sobre o qual
Hesíodo escreveu. Gente do Sul,
Gente que um dia se desnorteou.

in A Terceira Miséria, 32 e 33

“Não está aqui a minha in-timidade”, é o que digo sempre aos que acham estranho que eu abra a porta a toda a gente. “Está na serra”. Poucos me acompanharam até lá, ao meu lugar, do qual não há fotografias. Os segredos da casa, esses existem para serem revelados logo à primeira instância dos afectos.

Antigamente havia gradações no espaço franqueado aos visitantes. Minha mãe recebia os vendedores e as ciganas pobres à janela, os portadores no corredor de entrada, as cunhadas do campo na cozinha, as amigas na sala de costura. Durante esses encontros de mulheres, escondia-me sob a mesa de camilha para escutar histórias de morte e assombrações. O meu pai não queria que eu ouvisse conversas que pudessem assustar-me, e elas pigarreavam e sorriam até me verem fora do alcance. O mundo feminino estava então muito imbuído de delicadeza. As senhoras prendiam a linguagem como se adivinhassem que existia, de facto, uma criança ali escondida. Lembro-me de silêncios e imagino que o olhar ou um gesto transmitiam mudas informações sobre adultérios. Mas o que quer que houvesse de erótico nas tardes prescindia do sexo. Elas vergavam sob a pura energia do terror. Umas davam notícias de agonias, outras de vultos que caíam sobre as camas, deixando nos colchões as suas covas e manchas negras, como de carvão. Invocava-se Deus, entre suspiros. Porém nada descia a consolá-las. Punham-se a folhear os .gurinos, troçando dos modelos arrojados. O desespero estava em tudo como um cheiro.

Eu só usava o esconderijo quando não se acendia a braseira. No Inverno, eram os gatos quem o ocupava. Creio bem que os seus sonos não estavam tão cheios de fantasmas como os meus. Eles gozavam os sons e o calor, mas as palavras nunca penetravam no seu conhecimento de ani-mais. Consegui, decifrando-lhes a linguagem, uns prodígios de comunicação tão eminentes que os vizinhos me chamavam “a menina dos gatos”. Tenho em mim um grande parentesco de felinos.

Vivi a infância como se vivesse uma acção jamais interrompida. Quando fui, por exemplo, capitã, os pequenos soldados perfilavam-se, fazendo continência, mesmo quando me viam no café com os meus pais. Não faltavam vilões nos meus enredos. Durante as aventuras no Convento, eu recordava que o meu pai estivera preso com outros membros da oposição numa dessas masmorras que pareciam adequadamente medievais. Ia de noite vigiar a rua enquanto, com uma imprudência romanesca, meu pai sintonizava emissões clandestinas num rádio que se achava quase junto à janela. Andava ali o perigo das palavras. Certas palavras ameaçavam um desastre e inquietavam muito minha mãe.

Mas também as figuras protectoras circulavam sem esforço entre os dois mundos. A Luisinha, que era e ainda é o mais belo dos seres humanos que já vi, passava para dentro dos livros ilustrados como fada e princesa. E deles saía para me resgatar da crueldade que é o grande exercício das crianças e que eu, mimada e frágil, atraía. Ela esteve doente e eu visitava-a. Ia encontrá-la na cadeira de repouso, na grande balaustrada das glicínias, de cachos tão azuis como os seus olhos. E ali nada me obrigava à escolha, à dilaceração que marca a entrada no mundo do real e não mais sara. Um texto segregava as suas linhas, e tudo aquilo que existia à sua volta nele se inscrevia, como orvalho numa teia.

As palavras impunham-se entre nós como se impõem as pessoas de família, com encanto umas, tirania outras. Existia uma espécie de histeria na vigilância com que se julgava cada um pela sua competência no emprego da língua. O mero acto de pedir um produto ao merceeiro era alvo do escrutínio mais feroz. Dividia-se então a sociedade entre aqueles que diziam “uma quarta” e os que diziam ou mandavam dizer o peso em gramas, fazendo a concordância masculina. Eu ia muitas vezes, com a minha prima-ama, passar dias na aldeia dos seus pais. Ficava apenas uns dois quilómetros de distância de Mafra, a minha terra, mas a mudança que se operava então a nível lexical e até sintáctico entontecia como um turbilhão. As refeições tinham os nomes deslocados, ao almoço chamava-se jantar. Dizia-se “aviarem-se” por “despachem-se”. Faziam a gostosa ditongação .nal, como os alentejanos. À luz do candeeiro de petróleo e longe dos cuidados do meu pai, eu sentava-me à mesa, como sempre faziam as crianças camponesas, aprendendo pela boca dos adultos que não deve pisar-se o rasto às bruxas nem ocultar-se o fato ao lobisomem. Coisas inomináveis espreitavam dentro da natureza e eu amava-a. Ela não aceitava condições.

Em minha casa os livros habitavam como presenças vivas. Em cada aniversário de meu pai, a minha mãe enchia a casa de camélias. E certa dama, de que eu só sabia que usava um ramo de camélias à cintura, tomava o seu lugar na festa, provocando sorrisos misteriosos nos adultos. Tinha as feições da Garbo, a “nossa” actriz. Nem mesmo a Rita Hayworth , por parecida que todos a achassem com a minha mãe, disputava o seu alto prestígio na família. Um temporal não tinha nome de temporal: trazia o “Monte dos Vendavais” para a nossa rua. As discussões entre os meus pais sobre Camilo e Eça de Queirós alcançavam veemências inesperadas. Lembro-me de uma vez minimizar Camilo que eu evidentemente ainda não lera e era de minha mãe. Eça era de meu pai. Ele não gostou: “Quem te dera chegar-lhe aos calcanhares!”. Costumava achar graça ao que eu dizia, de modo que o olhei boquiaberta. Nunca lhe vira tal severidade.

A minha história clínica tem notas curiosas. Quando nasci, não vinha convencida a .car. Não sendo prematura, estive na incubadora de que agora ninguém pode falar sem rir. Recebi transfusões de sangue na cabeça. Com a vacinação feita aos três meses, manifestaram-se alergias decididas a não cederem sob terapia alguma. Como li muito desde os quatro anos, o médico declarou um esgotamento e proibiu-me de ir para a escola aos seis. Tinha febres e havia naquele tempo uma memória da tuberculose. Vinha para a minha irmã, para Lisboa, e a tem-peratura revelava-se normal. Ainda nada disto me passou.

A minha mãe sonhara vestir-me à inglesa, de veludo azul-escuro e com chapéu de feltro no Inverno, de branco no Verão. Renunciou. Pôs-me sandálias e calções, mandou cortarem-me o cabelo à rapazinho. O meu estado bravio prolongou-se pela adolescência.

Quando acabei o antigo quinto ano, enfrentei o pior dos pesadelos. Ia ser obrigada a frequentar, em Lisboa, um Liceu só feminino. Pensava nos relatos tenebrosos dos colégios de freiras. Num meio escolar perverso e castrador, o D. Amélia revelou-se uma excepção. Ocupava e ocupa um palácio dos Câmaras. Com alguma ousadia, muita vez acedemos a zonas proibidas em que as portas abriam para saletas ainda com restos de mobiliário e festões nas paredes.

Nesses dois anos conheci um fervilhar de criação e recepção das artes que me dava a ideia de andar sempre na iminência de um deslumbramento. O meu amor pela Grécia começou, o meu amor pela dança renovou-se. Bem ao contrário do que eu antevira, as meninas ligaram-me ao exterior onde existiam, para além de rapazes, filmes, música, bastidores de teatro que assaltávamos com fanatismo um tudo-nada avant la lettre. Trago em mim nomes vindos desse tempo: Maria Filomena Molder, Maria Fernanda de Abreu, outros que não deixaram obra pública mas que acenderam muita luz na minha frente.

Os grandes Professores da Faculdade davam as suas aulas de manhã. Com o meu apetite pelas noites, cometi o pecado irremissível de as não frequentar. Perdi assim a maior das memórias, a dos Mestres. Andava por ali então um mito, o do estudante-revolucionário, e embati nele como muita gente. Ainda hoje não se sabe ao certo quanta seriedade havia ali. A evidência moral do antifascismo dispensava compêndios .losó.cos. Por essa altura, recompus as peças do puzzle familiar e integrei nele aquilo que sempre me faltara: irmãos.

Depois, registo ainda esse romance em que a minha paixão pelo ensino teve um mau fim. E acabou-se ali a minha luta com a realidade.

Estou consciente do desequilíbrio que afectou esta massa narrativa. Descai na maior parte para a infância, depois começa a fraquejar, depois dissipa-se. Os passos biográficos que evoco não são a minha vida. São fragmentos de experiên-cias comuns, objectos de partilha que podemos manobrar frente aos outros sem pudor. Há, para muitos deles, testemunhas. Posso mostrá-los, como mostro até o quarto de dormir para exibir bordados que me faz a minha irmã. À serra, não vos levo. Não vos levo para dentro dos meus esconderijos. Está lá a minha escrita: não falo dela. Estão lá as minhas vidas: reservadas e sub-terrâneas, sem acesso à vista. Estão as palavras e o interdito. Estão os lugares e os tempos que se regem por coordenadas que não deixo aqui.

(Artigo publicado no Jornal de Letras, 30 de Março de 2005. Retirado daqui.)

Foto: Gonçalo Rosa da Silva)

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