Húmus

Em relação à pobreza, como em relação à humildade, há um montão de equívocos. A gente tem de arranjar outras palavras, tem de conseguir dizer hoje doutra maneira o que palavras gastas já não conseguem exprimir.

Homo (homem) e humilitas (humildade) têm etimologicamente a mesma raiz: humus (terra e chão, em latim). O homem é feito de húmus; e todo aquele que respeita a sua dignidade (sacralidade) e a dos outros respeita a verdade: o homo é feito de húmus; esta humildade é uma verdade. Verdade é o homem ser feito de húmus, e não ter muito dinheiro no banco ou as armas do poder.

Como explica a Escritura, Deus formou o homo do humus (Gen 2,7), mas para o levantar dele, do pó e do esterco, para o sentar com os príncipes e dar-lhe um trono de glória (1 Sam 2,8). “Elevar o homem à participação da vida divina”, diria o Vaticano II (LG 2).

Há aqui duas coisas. A primeira é que a vocação do homem implica que ele se levante do pó e do esterco; e a segunda é que, por isso, nenhum homem pode calcar com as botas da arrogância, da soberba, da vaidade ou da injustiça o outro homem. Que o homem se levante, com toda a sua dignidade e capacidade, e que o homem não amarre nenhum outro homem a uma indignidade que lhe impeça a dignidade, qualquer que ele seja. “Salvar a pessoa do homem e restaurar a sociedade humana … a fim de instaurar a fraternidade universal que corresponde à vocação de todo o homem” (GS 3).

Sem isto não há Homens, sem isto não há dignidade humana, sem isto não há direitos humanos.

Para nós, os cristãos, à luz da Boa Nova de Jesus, por maioria de razão. As nossas relações com Deus estão indissoluvelmente ligadas à maneira como nos relacionamos com os outros: “tudo o que fizerdes a um destes mais pequeninos…” (Mt 25,40). Nenhum homem pode dizer que respeita Deus e que se respeita a si mesmo se despreza os outros, um que seja dos outros. Só um homem entende os homens, o que nenhum super-homem é capaz de o fazer.

Os ricos nunca entenderão os pobres se não forem capazes de se pôr na sua pele, não para se tornarem como eles, mas para os chamarem à sua riqueza. É aqui que se entende a pobreza evangélica, e a partilha, e a comunhão ou comunicação de bens. Repartir o Ter (isto é, os bens materiais), o Poder (isto é, assumi-lo exclusivamente em atitude de serviço) e o Saber (repartir bens doutra ordem, que não só materiais).

Cur Deus homo?, perguntava a Idade Média. Porque é que Deus se fez homem? Para se fazer pobre, ou para puxar os homens para si? “Subo para o meu e vosso Pai, Deus meu e Deus vosso” (Jo 10.17). É muito mais fácil descer que ajudar a subir. Mas, assim sendo, para haver alguns-muito-ricos tem de haver muitos-muito-pobres? Por isso é que, nos sécs. XII e XIII, depois da pergunta de Santo Anselmo (séc. XI), a questão da pobreza irromperia violentamente na Igreja até à síntese dos mendicantes.

A pobreza evangélica não se confunde com miserabilismo: vamos descer à miséria para sermos miseráveis? A pobreza evangélica é servir e (re)partir, partilhar e distribuir dignidade sobretudo, e também capacidade de que um homem saia da sua situação de miséria e degradação humana. Foi só para isso que Deus se fez homem. E quem disser o contrário não percebeu nada do mistério da Incarnação. Deus não se fez homem para morrer na cruz. Porque se fez homem é que morreu na cruz para dela nos libertar. A pobreza de Deus e do seu filho Jesus foi apenas uma exigência de comunhão com os homens – os pobres, que os ricos não precisam que comunguem com eles – para lhes dar consciência da sua dignidade e da sua vocação. Deus não perdeu nada de si para descer aos pobres; mas ganhou para si os pobres: “aos pobres é anunciada uma Boa Nova” (Mt 11,5).

Por isso ainda é que, no séc. XIX, a questão dos pobres, que eram ao tempo os operários, levou a que, logo no século seguinte, muitos trabalhadores, e nomeadamente os padres operários, falassem em incarnação.

“Jesus Cristo não receou arriscar na incarnação. Sendo Deus aceitou limitar-se a um homem. Sendo eterno, aceitou limitar-se num tempo da História. Estando presente em toda a parte, como diz a doutrina, aceitou viver confinado num lugar. Sendo omnipotente, aceitou o desafio da fraqueza e da pobreza, aceitou pertencer ao povo dos pobres e dos fracos, dos não detentores do poder e da riqueza; e aceitou tomar riscos concretos que lhe valeram inimizades mortais”. Mas, se Jesus incarnou para salvação dos homens, também nós temos de acreditar “que a incarnação na vida dos homens é fundamental para participar em trabalhos de libertação. Talvez pelo facto da nossa incarnação ainda não ter ido até fronteiras mais ousadas é que ainda participamos tão pouco em experiências de libertação” – escreveu o Gaspar.

“Cristo Jesus, que era de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-se [isto é, baixou à condição do humus] ainda mais, sujeitando-se até à morte e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo o nome” (Fl 2,6-8).

Deus não quer que os homens sejam pobres. Quer é que os pobres se façam homens em plenitude a partir da sua dignidade e da justiça de todos, e que ninguém seja arrogante e injusto do alto da sua riqueza, nem rico à custa da pobreza seja de quem for.

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