Estou cada vez mais convencido de que esta crise, devida ao coronavírus, tornou possível um apocalipse no sentido mais profundo do termo, um «levantar o véu» sobre uma realidade que não sabíamos ler nem destrinçar: um múltiplo apocalipse, que revelou a situação da vida da Igreja em Itália.
Não escondo que existe em mim, mais do que um mal-estar, um verdadeiro sofrimento eclesial. Foi desestabilizada uma convicção profunda que me habitava: a de que, na minha vida de fé, o concílio Vaticano II tenha significado não uma descontinuidade, mas uma verdadeira renovação. Muitas vezes, nestes meses, me pareceu que, ao nível eclesial, se viveu como no tempo da minha infância e juventude, antes da reforma litúrgica e da mudança de paradigma do viver cristão no seio dos homens.
De um modo particular, o modo como foi tratada a eucaristia, o sacramento do qual brota toda a vida da Igreja, em palavras e ações, feriu-me gravemente. Que fique claro: com este contributo não pretendo, de modo nenhum, alimentar polémicas diante das disposições improvisadas, das proclamações plenas de segurança, das asserções ideológicas que se seguiram nestes meses de estado de emergência. Desejo apenas afirmar as minhas convicções, pondo-me à escuta da realidade e das vozes de homens e mulheres crentes aos quais procurei estar próximo nesta situação inaudita.
É verdade, o juízo é severo: continua a ser para mim incompreensível que um presbítero tenha podido pensar estar a celebrar uma verdadeira eucaristia em direto, por streaming, pedindo aos que estavam a assistir de terem um pão na mesa de suas casas e de o comerem no momento próprio do ritual da missa, enquanto o presbítero lhe conferia a “consagração” por via digital. Continua a ser para mim difícil de compreender a «missa sem povo», celebrada por um presbítero solitário e teletransmitida. Na minha mente e no meu coração está impresso o que aprendi no catecismo: para a celebração da missa é necessária a presença pelo menos de um fiel. Recordo-me tantas vezes do padre que vivia na minha aldeia e que, para «poder dizer missa», se esforçava por encontrar um fiel (eu, com frequência, pois vivia diante da igreja), para que a missa pudesse ser celebrada.
As missas solitárias que testemunhamos neste período – por vezes tornadas mais ridículas com fotografias de fieis colocadas nos bancos, ou com criações arbitrárias e histriónicas do presbítero – deram apenas a imagem de um clericalismo que imaginávamos já sepultado. Quase todos se calaram e consentiram com esta situação, salvo alguns padres e teólogos verdadeiramente inspirados pelo Vaticano II. Alguns escreveram até aos respetivos bispos para lhes comunicar que, durante o tríduo pascal, não celebrariam uma eucaristia privada ou teletransmitida, para não viverem uma situação de privilégio. Sejamos claros: muitos presbíteros (e, com eles, algumas comunidades religiosas) puderam celebrar a eucaristia, sem se interrogarem nem discernirem as contradições litúrgicas que viviam, enquanto todos os outros tinham de praticar o jejum eucarístico.
Não posso também esquecer o sofrimento ao saber que muitos doentes, já impossibilitados de ter a proximidade dos entes queridos, ficaram privados também do conforto religioso. Os presbíteros obedeceram às disposições do governo, mas teria sido bom recordar que os cristãos, sobretudo os anciãos, não se preparam para viver o êxodo desta terra sem a confissão e a eucaristia, situação agravada pela solidão. Cristãos habituados a rezar diante da morte depois de terem recebido o sacramento da confissão e, se possível, a unção dos enfermos e a eucaristia, viveram de um modo mais dramático este testemunho da «pastoral eclesial».
Mais uma vez, foi a voz do Papa Francisco que nos alertou, na sua meditação matutina de 17 de abril, em Santa Marta: «alguém me fez refletir sobre o perigo deste momento que estamos vivendo, essa pandemia que fez que todos nos comunicássemos também religiosamente através dos media, inclusive esta missa: estamos todos comunicados, mas não juntos, espiritualmente juntos. O povo é pequeno. Há um grande povo: estamos juntos, mas não juntos. Também o sacramento: hoje vocês terão a eucaristia, mas as pessoas que estão em conexão connosco (terão) somente a comunhão espiritual. E esta não é a Igreja. Esta é a Igreja de uma situação difícil, que o Senhor a permite, mas o ideal da Igreja é sempre com o povo e com os sacramentos. Sempre».
Eis porque colocamos algumas questões: porquê tanta superficialidade no adotar a modalidade de celebrações eucarísticas em streaming? Porque não dizer claramente que uma «liturgia virtual» não é uma liturgia cristã? E, sobretudo, por que não se conseguiu – à exceção de algumas dioceses – promover uma liturgia doméstica, uma liturgia da Palavra na família e na comunhão, liturgia na qual a presença de Cristo é eficaz e vivificante como na eucaristia? Onde estão os frutos de tantas exortações papais, em particular de Bento XVI e de Francisco, que convidam a celebrar em conjunto a Palavra, mesmo na família ou em pequenos grupos, certos de que o Senhor Ressuscitado está nela presente e que essa Palavra “repartida”, graças à epiclesis, é corpo de Cristo, alimento e viático a caminho do Reino? Não sinto desprezo nem desconfiança em relação aos media que hoje dominam o nosso horizonte, mas continuo convicto de que a virtualização da liturgia significa a morte da liturgia cristã, que é sempre o encontro de corpos e de realidades materiais.
Não esqueçamos que a assembleia, a reunião dos crentes, é a própria essência da Igreja, realidade convocada por Deus. Neste sentido, o sacramento eucarístico não pode ser virtual, mas é vivido na sua realidade de Ceia do Senhor, celebrada por uma comunidade específica. A eucaristia cristã é o evento no qual se come e se bebe em conjunto, assimilando o corpo do Senhor doado na Palavra, no Pão e no Vinho, para se tornar assim o corpo eclesial de Cristo. Se é verdade que não há Igreja sem eucaristia, é também verdade que não há eucaristia sem Igreja.
Tentarei agora, enfim, fazer uma leitura católica do que, na minha opinião, teria sido um melhor proceder. Sabemos antes de mais que os monges do deserto ficavam muito tempo sem eucaristia, na sua solidão expectante do Reino. Também São Bento, o pai dos monges do ocidente, na sua condição eremítica precedente à fundação da vida cenobítica, vivia sem eucaristia. O seu biógrafo Gregório Magno narra que São Bento se esqueceu até uma vez de celebrar a solenidade litúrgica mais importante: «tão afastado dos homens, o servo de Deus ignorava até que aquele era o dia de Páscoa».
Pode-se assim, por um certo tempo, fazer uma vida cristã sem a celebração eucarística. Assim aconteceu no deserto, assim aconteceu e continua a acontecer nas horas de perseguição e, para muitos, nas situações de doença ou de impedimento a participar na eucaristia juntamente com a comunidade eclesial, como na Amazónia ou em terras de missão, devido à escassez de presbíteros. Disto os monges sempre tiveram uma consciência clara. Bastaria reler as palavras de Guilherme de Saint-Thierry, abade cisterciense do século XII: «Se bem que seja lícito celebrar sozinhos (a eucaristia), a seu modo, tempo e lugar, a alguns homens a quem foi confiado este ministério (isto é, os presbíteros), todavia este mistério expõe-se diante de todos (…) Se quiseres, e se o quiseres de verdade, a todas as horas do dia e da noite, na memória de Cristo crucificado e ressuscitado, comerás o seu corpo e beberás o seu sangue» (Carta de Ouro, 117.119).
Mas seja afirmado claramente que, na fé cristã, o «culto segundo a palavra» (loghiké latreia: Rm 12, 1) é antes de mais um culto real: culto na vida, na comunidade dos irmãos e irmãs e no seio da humanidade. E se é verdade que o culto real tem necessidade do culto simbólico, este não pode nunca substituí-lo. Todos sabemos que, mesmo faltando as condições para a celebração eucarística, desejada ardentemente pelos cristãos, a fé não se perde, e mais do que nunca os crentes são chamados a viver o culto como oferta das suas vidas e dos seus corpos, no serviço, na cura e no amor dos irmãos e das irmãs. Somos conscientes de que, durante décadas, os cristãos dos tempos primitivos viveram o culto nas suas casas, como testemunham os Atos dos Apóstolos (cf. 2, 42)? O jejum eucarístico de toda a Igreja, quando é de facto imposto pela situação de emergência, deve encontrar todo o corpo eclesial solidário, todo o corpo empenhado no sofrimento pela «falta» do alimento essencial. Somos chamados a viver a obediência da fé nesta exigente comunhão, na expectativa de podermos celebrar juntos a eucaristia, que é sempre festa pascal.
No meu coração está o desejo de que os cristãos não se habituem à «missa como e quando querem», «de casa», e que possam regressar à eucaristia dominical convictos de que – como diziam os mártires das origens – sine dominico non possumus, «sem a eucaristia dominical não podemos dizer-nos cristãos». Espero também que tenhamos descoberto a força salvífica da palavra de Deus contida nas Escrituras, Palavra pregada e celebrada também na liturgia doméstica.
Enzo Bianchi
In Vita Pastorale, junho 2020, dossier «Questa non è la chiesa»
Retirado de monasterodibose.it
Tradução: Rui Pedro Vasconcelos