Jeremias

Voltamos aos profetas: no domigo passado foi Isaías, o 2º, agora Jeremias. Gritam os leitores do futuro: “Levanta-te, Jerusalém”.

Jeremias dizia o que via: Olho a terra, é um caos informe. Olho o céu, está sem luz. Os montes tremem, as colinas estremecem. Homens não há; as aves fugiram do céu. A terra fértil é agora um deserto. As povoações foram arrasadas pelo Senhor, pelo incêndio da sua cólera! (4,23-26). Ouvem-se gritos de pavor, de terror e não de paz (30,5). De terras longínquas vem-nos o inimigo lançar gritos de terror contra as cidades de Judá. Ao ouvirem a cavalaria e a infantaria, os habitantes fogem (4,16.29). Ouço um grito, parece de uma mulher a dar à luz; é o grito angustiado de Sião (4,31).

Porquê assim?

Agora é Deus que fala. O meu povo esqueceu-me (18.15). Abandonou-me (2,13). Dia e noite, os meus olhos desfazem-se em lágrimas; o meu povo tem uma grande ferida mas é uma chaga que não tem cura (14,17). Abandonou-me, a mim que sou uma fonte de água viva, e preferiu construir cisternas rotas que não conseguem reter as águas (2,13). Quem se compadecerá de ti, Jerusalém? Quem, no seu caminho, vai agora fazer um desvio, pequeno que seja, para te vir perguntar como estás? Abandonaste-me e voltaste-me as costas! (15,5).

Aqui mesmo surge o profeta e a sua missão.

O Senhor enviou-me a profetizar contra este templo e esta sociedade (26,12). Emendai a vossa conduta e as vossas acções, e eu – o Senhor – habitarei convosco neste lugar; mas não vos iludais com razões falsas dizendo “o templo do Senhor, o templo do Senhor, o templo do Senhor”. Se emendardes conduta e acções, se julgardes os pleitos com rectidão, se não explorardes nem o imigrante, nem o órfão nem a viúva, se não derramardes sangue inocente neste lugar, se não seguirdes – para vosso mal – deuses estrangeiros, então eu habitarei para sempre no meio de vós neste lugar, na terra que dei a vossos pais, nos tempos antigos e para sempre (7,1-8).

Deste modo, o profeta extirpava falsas seguranças e ilusões, religiosa e politicamente equivocadas. Todo o seu ministério profético foi uma luta aberta e declarada contra qualquer forma de falsidade. Mas Jeremias fecundava sobretudo o seu povo anunciando-lhe um futuro de graça e de novidade.

Vou reunir-vos de todas as terras para onde, no furor da minha ira e no fundo da minha indignação, vos exilei. Conduzir-vos-ei a este lugar, para que, aqui, habiteis em segurança. Sereis o meu povo e eu o vosso Deus. Dar-vos-ei um coração puro e uma conduta íntegra. Respeitar-me-eis toda a vossa vida, para vosso bem e bem dos filhos que vos hão-de suceder. Farei convosco uma aliança eterna e não me cansarei de vos abençoar. Ajudar-vos-ei a respeitar-me, a que não vos separeis de mim. Terei alegria em fazer-vos bem. Instalar-vos-ei de verdade nesta terra, com todo o meu coração e toda a minha alma.! (32,37.44).

No fundo, o que revolvia as entranhas e o peito do Profeta (8,8) era a consciência do amor de Deus pelo seu povo. Diante do fracasso que lhe parecia ser a sua pregação e perante as ameaças de morte que lhe faziam os poderosos que o queriam calar, o profeta até tentou retirar-se. Mas não conseguiu. Pelo contrário; ele que foi um dos maiores profetas de Israel fez das fraquezas forças:

Ai daquele que constrói a sua casa sobre a injustiça e os seus aposentos com iniquidade! Ai daquele que obriga o seu próximo a trabalhar sem lhe pagar o salário! Ai daquele que diz: Vou mandar construir um grande palácio, salões espaçosos, com rasgadas janelas e tectos de cedro pintados de vermelho! Pensas que és rei só porque podes comprar cedro? Mas repara: o teu pai comia e bebia – e muito bem! – mas também praticava a justiça e o direito e partilhava do seu com os pobres e os indigentes. E isso é que é conhecer-me! Palavra do Senhor! Mas tu, pelo contrário, só tens olhos e coração para o lucro, para derramar sangue inocente, abusando e oprimindo (22,1-4.13-17).

Vamos denunciá-lo, vamos desfazê-lo e assim nos vingaremos dele (20,10) – ameaçava a multidão. Este homem merece a morte porque profetizou contra esta cidade, como ouvistes todos (26,22) – diziam os sacerdotes do templo de Jerusalém. Os que eram meus amigos espiam agora os meus passos (20.10) – lamentava-se o profeta.

Perante isto, a oração do profeta foi assim: Tu, Senhor, que sabes tudo, lembra-te de mim, ampara-me e vinga-me dos que me perseguem; que eu não seja apanhado por eles (15.15); Escuta o que dizem os meus adversários. Abriram uma cova para me tirarem a vida. Lembra-te de que me apresentei diante de ti a interceder por eles, a afastar deles a tua cólera (18,19-20); Seduziste-me, Senhor, e eu deixei. Dominaste-me e venceste. Mas agora eu sou objecto de contínua chacota, toda a gente escarnece de mim. Sempre que falo é para dizer Violência!, Opressão! A tua Palavra tornou-se para mim motivo de insultos e escárnios, dia atrás de dia … Mas eu sei, Senhor, que estás comigo como poderoso guerreiro (20,7-18).

Olho a terra, é um caos informe. Olho o céu, está sem luz. Os montes tremem, as colinas estremecem. Homens não há; as aves fugiram do céu. A terra fértil é agora um deserto. As povoações foram arrasadas pelo Senhor, pelo incêndio da sua cólera! (4,23-26). Ouvem-se gritos de pavor, de terror e não de paz

Nos tempos que vivemos, para além dos Profetas temos os Sinais dos Tempos que nos falam não apenas nem necessariamente de Deus, mas também do Homem e das suas esperanças – que “a glória de Deus é o Homem vivo” (Stº Ireneu, séc. II) -, sinais positivos e negativos do Homem e da Humanidade, sinais da presença e da ausência de Deus.

No fim do ano litúrgico, estamos quase nele, a Liturgia vai-se chegando caladamente à questão do fim ou dos fins, da escatologia (de éscaton, palavra grega que quer dizer fim): um pouco como o frio do Outono chega caladamente no fim do Verão.

A Liturgia vai-se chegando caladamente à questão do fim ou dos fins, dizia. Depois virá o Advento, o tempo litúrgico que nos espicaça a Esperança, aguça a perspectiva e ajuda a saborear a Vida, rumo ao Reino de Deus. “Per visibilia ad invisibilia” (Rm 12,20), dizia Paulo aos Romanos, é através das coisas visíveis que chegamos às invisíveis:

“Os bens da dignidade, da comunhão fraterna e da liberdade, frutos da natureza e do nosso trabalho, depois de … difundidos na terra, no Espírito do Senhor e segundo o seu mandamento, voltaremos de novo a encontrá-los, mas então purificados de toda a mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal, “reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz”, Reino que está já misteriosamente presente, mas que atingirá a perfeição quando o Senhor vier” (GS, 39).

Mas, atenção: “o reino de Cristo não é deste mundo. A Igreja, ao implantar este reino, não subtrai coisa alguma ao bem temporal de nenhum povo, mas, pelo contrário, fomenta e assume as qualidades, as riquezas, os costumes e o modo de ser dos povos, na medida em que são bons” (LG 13).

Arlindo de Magalhães, 25 de Outubro de 2015

(imagem: O Profeta Jeremias, de Marc Chagall)

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