Lemos aqui, a semana passada, uma página do primeiro Livro das Crónicas, afinal uma síntese da história israelita que se estende desde as origens — de Adão a Abraão (Isaac, Ismael, David, Salomão, etc.) — e vai até ao édito da libertação de Ciro, o rei persa que no ano 538 aC permitiu que os judeus desterrados na Babilónia voltassem a Jerusalém.
O Cronista dá uma visão da História passada, desde a origem do homem até ao restabelecimento do culto depois do desterro babilónico. Deus está de novo com o Povo no Templo a construir na cidade santa!, alegra-se o povo, até porque, o rei “mantê-lo-ei em minha casa e no meu reino e o seu trono será firme eternamente” (1 Cro 17,14). Todos, os reis e os profetas, punham os seus olhos no Templo e na teocracia (política religiosa).
Mas chegaram depois novas questões e novos profetas. Estes tinham começado a aparecer lá pelo séc. VIII aC, mas houve muitos mais (Amós, Oseias, Isaías…) que prometiam o florescimento de uma nova e verdadeira paz, e a ida a Sião de todos os povos.
No seguimento de leitura das Crónicas, a Liturgia de hoje apresenta um destes Profetas mais novos, Jeremias, o profeta chamado por Deus que lhe respondeu: Aaaaaaah, meu Deus, eu nem falar sei! E Deus respondeu-lhe: Não digas que não sabes falar. Irás aonde eu te enviar e dirás tudo o que eu te mandar. Não terás medo diante de ninguém pois eu estarei contigo (Jer 1,4-8).
E Jeremias foi e dizia o que via: Olho a terra, é um caos informe. Olho o céu, está sem luz. Os montes tremem, as colinas estremecem. Homens, não há; as aves fugiram do céu. A terra fértil é agora um deserto. As povoações foram arrasadas pelo Senhor, pelo incêndio da sua cólera! (4,23-26). Ouvem-se gritos de pavor, de terror e não de paz (30,5). De terras longínquas vem-nos o inimigo lançar gritos de terror contra as cidades de Judá. Ao ouvirem a cavalaria e a infantaria, os habitantes fogem (4,16.29). Ouço um grito, parece de uma mulher a dar à luz; é o grito angustiado de Sião (4,31).
Porquê assim? O meu povo esqueceu-me (18.15). Abandonou-me (2,13). Dia e noite, os meus olhos desfazem-se em lágrimas; o meu povo tem uma grande ferida, mas é uma chaga que não tem cura (14,17). Abandonou-me, a mim que sou uma fonte de água viva, e preferiu construir cisternas rotas que não conseguem reter as águas (2,13). Quem se compadecerá de ti, Jerusalém? Quem, no seu caminho, vai agora fazer um desvio, pequeno que seja, para te vir perguntar como estás? Abandonaste-me e voltaste-me as costas! (15,5).
Ai!, as minhas entranhas e o meu peito! Estou nervosíssimo e já me não posso calar (4,19). A minha dor não tem cura e o meu coração desfalece (8,18). Oh! Se eu tivesse uma fonte de água que me refrescasse a cabeça e uma fonte de lágrimas nos meus olhos, dia e noite choraria as chagas do meu povo! (8,23).
Nesta situação, o profeta quase desespera: Ai de mim, mãe que me geraste: sou um homem de provocar fraturas e abrir contendas com todo o mundo! (15.10).
Mesmo assim, cumpria a sua missão. O Senhor enviou-me a profetizar contra este templo e esta sociedade (26,12). Emendai a vossa conduta e as vossas ações, e eu – o Senhor – habitarei convosco neste lugar; mas não vos iludais com razões falsas, dizendo “o templo do Senhor, o templo do Senhor, o templo do Senhor”. Se emendardes conduta e ações, se julgardes os pleitos com retidão, se não explorardes o imigrante, o órfão e a viúva, se não derramardes sangue inocente neste lugar, se não seguirdes – para vosso mal – deuses estrangeiros, então eu habitarei para sempre no meio de vós neste lugar, na terra que dei a vossos pais, nos tempos antigos e para sempre (7,1-8).
Deste modo, o profeta extirpava falsas seguranças e ilusões, religiosa e politicamente equivocadas. Todo o seu ministério profético foi uma luta aberta e declarada contra qualquer forma de falsidade. Mas sobretudo Jeremias soube fecundar a história com a notícia de um futuro de graça e de novidade.
Vou reunir-vos de todas as terras para onde, no furor da minha ira e no fundo da minha indignação, vos exilei. Conduzir-vos-ei a este lugar, para que, aqui, habiteis em segurança. Sereis o meu povo e eu o vosso Deus. Dar-vos-ei um coração puro e uma conduta íntegra. Respeitar-me-eis toda a vossa vida, para vosso bem e bem dos filhos que vos hão de suceder. Farei convosco uma aliança eterna e não me cansarei de vos abençoar. Ajudar-vos-ei a respeitar-me, a que não vos separeis de mim. Terei alegria em fazer-vos bem. Instalar-vos-ei de verdade nesta terra, com todo o meu coração e toda a minha alma.! (32,37.44).
Poderíamos recordar agora mesmo, e de novo, as palavras do Profeta lidas hoje na Liturgia.
No fundo, o que revolvia as entranhas e o peito do Profeta (8,8) era a consciência do amor de Deus pelo seu povo. Face ao que lhe parecia ser o fracasso da sua pregação e perante as ameaças de morte que lhe faziam os poderosos que o queriam calar, o profeta bem tentou retirar-se. Mas não conseguiu. Pelo contrário; fez das fraquezas forças, este que é um dos maiores profetas de Israel.
Ai daquele que constrói a sua casa sobre a injustiça e os seus aposentos com iniquidade! Ai daquele que obriga o seu próximo a trabalhar sem lhe pagar o salário! Ai daquele que diz: Vou mandar construir um grande palácio, salões espaçosos, com rasgadas janelas e tetos de cedro pintados de vermelho! Pensas que és rei só porque podes comprar cedro? Mas repara: o teu pai comia e bebia – e muito bem! – mas também praticava a justiça e o direito e partilhava do seu com os pobres e os indigentes. E isso é que é conhecer-me! Palavra do Senhor! Mas tu, pelo contrário, só tens olhos e coração para o lucro, para derramar sangue inocente, abusando e oprimindo (22,1-4.13-17).
Vamos denunciá-lo, vamos desfazê-lo e assim nos vingaremos dele (20,10) – ameaçava a multidão. Este homem merece a morte porque profetizou contra esta cidade, como ouvistes todos (26,22) – diziam os sacerdotes do templo de Jerusalém. Os que eram meus amigos espiam agora os meus passos (20.10) – lamentava-se o profeta.
O sacerdote Pachiur mandou [um dia] espancar o profeta e pô-lo no cepo da prisão (20,2), e o rei Sedecias deu ordens no sentido de que ficasse retido no pátio da guarda (37,21). Mas os dignatários disseram ao rei: “Morra este homem que desmoraliza os soldados e o povo da cidade com os seus discursos”… e prenderam-no na cisterna … que não tinha água, só lodo. E Jeremias ficou atolado no lodo (38,4-6).
A oração do profeta foi então assim: Tu, Senhor, que sabes tudo, lembra-te de mim, ampara-me e vinga-me dos que me perseguem; que eu não seja apanhado por eles (15.15); Escuta o que dizem os meus adversários. É assim que pagas o mal com o bem? Abriram uma cova para me tirarem a vida. Lembra-te de que me apresentei diante de ti a interceder por eles, a afastar deles a tua cólera (18,19-20); Seduziste-me, Senhor, e eu deixei. Dominaste-me e venceste. Mas agora eu sou objeto de contínua chacota, toda a gente escarnece de mim. Sempre que falo é para dizer Violência!, Opressão!. A tua Palavra tornou-se para mim motivo de insultos e escárnios, dia atrás de dia … Mas eu sei, Senhor, que estás comigo como poderoso guerreiro (20,7-18).
Numa época de infidelidade à Aliança, tocou a Jeremias uma tarefa difícil, a de anunciar um castigo de Deus. Tão difícil que, quando uma vez Jesus perguntou aos discípulos o que dele diziam dele, eles responderam “Uns dizem que és Jeremias…!” (Mt 16,14).
Arlindo de Magalhães, 18 de março de 2018