“Tinham um só coração e uma só alma” (At 4,32), “partiam o pão em suas casas e tomavam o alimento com alegria e simplicidade” (2,26), “aumentava todos os dias o número dos que tinham entrado no caminho da salvação”(2,47), “ensinavam o povo” (4,2), “todos cheios do Espírito Santo” (4,31), enfim, era o céu na terra.
O ambiente de vida dos cristãos da Igreja primitiva era tal e a maldade do mundo tão grande que o que eles queriam era o regresso de Jesus, que voltasse depressa, como dizia a prece que logo criaram e repetiam: «Marana tha! Marana tha!» (Vem, Senhor!). Eles próprios desesperavam da salvação do Mundo; a única solução que entreviam era, porventura, exterior à História. Venha ele, o Senhor!
Com o andar dos tempos, esta conceção progrediu sem dúvida. E continua a haver quem pense que o Mundo não tem solução; nos desastres e cataclismos, nas guerras e fragilidades de tudo, veem apenas o dedo de um deus castigador e por isso lhe pedem que destrua tudo com fogo, Mundo e Humanidade.
É este o contexto da parábola de Lucas. Evidentemente que a viúva não tinha hipóteses de conseguir justiça para o seu caso. E importunar o juiz, dia atrás de dia, não levava a sítio nenhum.
A parábola, no fundo como todas as parábolas, não é de todo lógica. É verdade que o juiz podia, de qualquer maneira, tê-la mandado passear, a viúva. Pode ele, um juiz que não faz justiça, cansado de ouvir a reclamante, ajudar a compreender a situação de Deus, que, dia a dia, escuta os gemidos dos pobres?
Não. O próprio Evangelho afirma que Deus fará justiça sobre toda a História dos homens, porque os seus julgamentos são históricos: todas as divisões e injustiças do tempo cairão, pois que o poder dos injustos que oprimem os pequenos da terra está cimentado sobre o nada. Por isso, ele “derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1,52).
Certamente que os tempos mais recentes nos ajudam a perceber que os julgamentos de Deus são históricos e que a própria História se encarrega de fazer justiça.
Neste contexto, uma interrogação como esta que acabámos de ouvir (“o Filho do Homem, quando voltar, ainda encontrará Fé sobre a terra?”) faz-nos estremecer, sobretudo num tempo como o nosso em que a acomodação parece dominar tudo e todos.
É um facto. Desde o imperador Constantino, ou melhor, desde Carlos Magno, que nós, depois de termos sido os maiores contestadores do mundo, acomodámo-nos. Não que não haja exceções. Na verdade, a Luta nunca esmoreceu e, dentro da acomodação, sempre se levantaram as vozes do Espírito que geme dentro de nós e no Corpo da Igreja que ele anima e habita. Só que, até nós fizemos os nossos mártires, mortos às nossas mãos: Francisco de Assis, Joana d’Arc, Teresa de Ávila, estes são santos, mas poderia lembrar Savanarola ou o portuguesíssimo Pe. Valentim da Luz (séc. XVI: “não se deve rezar aos santos, mas sim a Deus; mais vale dar esmola aos pobres do que às Igrejas; o Evangelho deve ser entendido à letra”; por dizer isto, foi condenado à morte na fogueira da Inquisição, em Lisboa, 1562); e continuo: fizeram tudo para esquecer o teólogo Pe. Chénu, o Pe. Congar, Teilhard de Chardin, também presbítero, …, e todos os mais que fizeram o Vaticano II. Paro, que nunca mais acabava a lista. E sei também que há alguns, poucos, que os não esqueceram. E alguns não andam longe daqui!
Nós tivemos sempre uma costela integrista, feita muitas vezes de intransigência e de intolerância. Muitas vezes, não morremos pelas pessoas, mas morremos pelos princípios. E se Jesus nos aparecesse hoje a tocar não já um leproso, que agora não há leprosos, mas um doente da Sida ou até, sei lá, um traficante de droga (que tinha de diferente um publicano no seu tempo?), nós éramos capazes de, mais uma vez, lhe atirar a primeira pedra. Não o condenaríamos por afirmar que era o Filho de Deus, isso já nós aprendemos na Catequese que o é, mas sim por andar em tão más companhias.
Nós começámos – dizia – por ser os maiores contestadores no seio do império. Tanto que ainda nos lembramos de quando o «sangue de mártires [era] semente de cristãos»!
Os tempos mudaram, porém, de tal modo que, há já muito tempo, acabámos por nos acomodar. Acomodámo-nos a tudo: ao poder político (mais, fomos o poder político), ao poder económico, com a cultura tivemos quase sempre uma relação muito difícil, apesar de termos sido praticamente nós os únicos cultos de um tempo que foi nosso particularmente, acomodámo-nos aos conquistadores, aos colonizadores, aos monárquicos, ao poder totalitário, ao capitalismo…, acomodámo-nos ao costume, mesmo que seja mau, e até mesmo à degradação, e depois passámos a dizer que “a virtude está [sempre] no meio” e passámos a perseguir os que têm a coragem de dizer que não. Ainda por cima, a Igreja de Jesus chegou e chega quase sempre ou muito tarde ou muito cedo, como lhe convém: à Liberdade chegou tarde, à Democracia também, ao Poder chegou sempre cedo e à Riqueza também, à Inquisição foi a correr e depois demorou-lhe muito tempo a perceber que esse era o lado mais escuro, etc.
Finalmente, acomodámo-nos à injustiça institucionalizada e passámos a dizer que é a Natureza ou até o Acaso que nos faz nascer desiguais: uns, filhos de ricos, e outros, de famílias pobres; uns, com imensas possibilidades, e outros, sem nenhumas; uns, com direito ao trabalho, e outros, sem emprego toda a vida, durante toda ela condenados e … desprotegidos da sorte.
Acomodámo-nos a isto como nos acomodámos à geografia da Fome. Olhamos o mapa da injustiça com a maior serenidade do mundo. Seremos nós até dos mais conformados e resignados, que não levantamos problemas? Somos honestos, trabalhadores, mas essas coisas passam-nos ao lado.
Acomodámo-nos a tudo, até dentro da Igreja. Já me convenci de que querem dar cabo do Vaticano II — e que já estão a fazê-lo e que não é preciso ir longe para o vermos, apesar dos esforços do Papa Francisco —, mas nós não damos conta! Mais: na Igreja como na sociedade, perdemos a capacidade do direito à indignação.
A Liturgia começa a cheirar a Advento, é verdade, levemente ainda, mas recordando já a oração dos primeiros — Marana tha! Marana tha! —, embora andemos todos muito ocupados. Não “sabemos interpretar os sinais dos tempos” (Mt 6,2)!
Razão tinha o evangelista quando perguntava se “o Filho do Homem, quando voltar, ainda encontrará Fé sobre a terra”.
Ainda bem que, como diz o jornalista, há “engenheiros de pontes, que não de muros”! Graças a Deus!
Arlindo de Magalhães, 16 de Outubro de 2016