Leprosos

Agnes Martin, ‘Untitled’ (1977) | https://www.guggenheim.org

 

Sabemos todos, mais ou menos, do que a lepra era no mundo antigo a mais horrível de todas as doenças, que originou então uma especial preocupação das autoridades eclesiásticas e seculares com os que a sofriam. Desde a Antiguidade que era assim. Já o velhinho Livro do Levítico (cap.s 13 e 14) incluía normas rigorosas para evitar o contágio, que se julgava inevitável e incurável. Os leprosos, afastados do convívio com as populações, deviam andar “com as roupas esfarrapadas em várias partes, o cabelo intonso, a boca tapada e de cabeça rapada e descoberta; ao aproximar-se-lhes alguém, deveriam gritar “Cuidado! Eu sou um contaminado, um imundo!” (Lv 13,45).

Isto durou, Idade Média dentro, até quase ao nosso tempo: os leprosos eram mandados ali para a Serra do Caramulo, convencidos todos de que se tratava de uma doença fortemente contagiosa… Era eu miúdo, e um Senhor que morava em frente à casa dos meu pais, leproso, já todo marcado pela doença, um dia vi que o levavam para a leprosaria, praticamente à força, e outro dia soube-se que por lá tinha morrido, na serra… Conhecida a doença só praticamente por meados do século passado, o seu diagnóstico começou a não ser tão difícil e percebeu-se que a lepra não era contagiosa; havia era pessoas que, por razões idênticas e a viverem num mesmo sítio, podiam ter lepra: a pobreza, a alimentação, a higiene, etc. A lepra não era controlável.

E, como sempre acontece nestas coisas, quando uma doença se não conhece com precisão, alarga-se o quadro da defesa. Na Idade Média, leproso era todo aquele que tivesse uma qualquer dermatose (doença da pele), pelo que era enorme o número dos desgraçados não leprosos que, julgando-se que o eram, se apartavam da sociedade, onde só lhes restava esperar a morte ou vaguear perdidos pelos montes. Mais tarde, começaram a ser acolhidos numa leprosaria (gafaria), que se erguia quase sempre à beira de uma ponte: ponte de Alfena, de Lousado, de Canavezes, etc.

Enquanto isto, nascia nas populações, por um lado, um sentimento de defesa, por outro, o da exclusão dos pobres atingidos pela doença. E isto foi terrível; isto é terrível, ontem como hoje. Vejam-se os fenómenos de rejeição que despoletaram, já em nosso tempo, os doentes da Sida!

Eu conto uma história medieval. Lázaro, o pobre da parábola do rico, que tinha o corpo coberto de chagas, portanto leproso, tornado então S. Lázaro, acabou por tornar-se o advogado dos doentes leprosos. Daí os lazaretos ou gafarias, as leprosarias, uma das incarnações maiores da Caridade na Idade Média! S. Lázaro, portanto, o patrono dos excluídos, dos leprosos, mas também dos padeiros. Não é verdade que também estes estavam, de algum modo, excluídos da sociedade?, a trabalhar de noite e a dormir de dia? Esquisito que isto era! Aqui está, a exclusão!

Seja como for, esta realidade da exclusão foi enorme no mundo antigo. Excluídos e a excluir, foram, ao tempo, os cristãos, os cátaros e todos os dissidentes, heréticos ou não, queimados vivos quantos. E a Inquisição, que matava para defender a Religião? E em Espanha não havia essa da “limpeza de sangue”, que era preciso provar, instrumento jurídico praticado pela Igreja e pelos reis que, até ao séc. XIX, excluíam de muitas corporações e territórios do país os descendentes dos judeus, dos mouros e dos penitenciados da Inquisição?

E, em Portugal, como se passaram as coisas com a história dos cristãos-novos (judeus convertidos ao cristianismo e seus descendentes só se limpavam “à sétima geração”; fossem o que fossem tinham sempre a Inquisição à porta!) e cristãos velhos (os sempre cristãos). E o que fez Hitler na 2ª guerra mundial?

E como foi no nosso Estado Novo, que, para alguém ser funcionário público, tinha que fazer o juramento anticomunista? E na Igreja não tinha de se fazer (e eu fiz, sabia lá o que fazia!) um juramento anti modernista?

A Europa cristã teve sempre as suas lepras e os seus leprosos. Porque a mania da limpeza acabou, quantas vezes, por passar por cima de todas as exigências da fraternidade, da caridade, do respeito mais liminar pela dignidade e sacralidade do Homem.

O Outro é sempre um perigo. Entre as nações (guerra quente ou guerra fria), na política (os partidos), na economia (os que roubam o dinheiro dos pobres, e são tantos, uns e outros), no comércio, na escola, o vizinho do lado, o tipo que vai à minha frente na estrada ou que vem atrás em cima de mim, o Outro não é meu irmão, é leproso, afaste-se e grite que é impuro, porque não tem nem saúde nem dinheiro, porque é diferente, e perigoso, e não tem direito e é diferente no que tem e no que pensa, é um perigo, perigoso se chama, e os migrantes africanos que não pode entrar no nosso Mundo, e os migrantes americanos que fogem do seu mundo para um mundo melhor, defendido por muros …

Até na Igreja, a alegria de “O Deus da minha juventude” (Sl 42,4) e “da Alegria do Evangelho” é posta em guarda, o que é pouco condizente com a sisudez das ortodoxias.

O episódio dos leprosos do Evangelho de hoje tem o seu núcleo não na cura dos 10, mas na capacidade que teve um de, libertando-se da Lei, se abrir à novidade da Graça. Para ele foi mais importante vir atrás e dar graças que seguir em frente para se apresentar aos sacerdotes, os representantes da Lei. Por isso, Jesus se mostrou admirado pela falta dos outros. E mais: o que veio era um samaritano!

Arlindo de Magalhães, 13 de outubro de 2019