Nada decidido, tudo interrogado

José Rodrigues, 'Variações sobre um Corpo'

José Rodrigues, ‘Variações sobre um Corpo’

Dizem os Atos dos Apóstolos que os primeiros cristãos, entre outras coisas (ensino dos Apóstolos e união fraterna), eram assíduos “à fração do pão (Eucaristia) e à oração” (At 2, 42).

Reuniam-se, portanto, para estas duas coisas: para a fração do pão e para a oração.

O que faziam então? Da Eucaristia não se trata aqui. Relativamente à oração, também pouco sabemos, para além do que nos diz o mesmo Livro: “frequentavam diariamente o Templo [de Jerusalém]” (2, 46). Mas isso foi só no princípio. Rapidamente, o Templo foi destruído, logo no ano 70, e os cristãos espalharam-se logo também um pouco por todo o mundo e, para a maior parte, Jerusalém ficava muito longe.

Mas de certeza que os primeiros não se tinham esquecido do ensinamento de Jesus: “Tu, quando orares, entra no teu quarto mais secreto e, fechada a porta, ora em segredo a teu Pai, pois ele vê o oculto e há de recompensar-te” (Mt 6,6). Essa era a oração pessoal.

A oração em conjunto, que começou por ser no Templo de Jerusalém, essa rapidamente passou a ser numa casa onde coubessem em conjunto: a oração em conjunto e a fração do pão. A fração não sabemos muito bem como se processava e rapidamente mereceu a crítica de Paulo: “pois que quando vos reunis não é a ceia do Senhor que comeis, pois que que cada um se apressa é a comer a sua refeição; e enquanto um passa fome, outro já está embriagado” (1 Cor 11,20).

A oração propriamente dita feita em conjunto não sabemos como evoluiu: no entanto, terá evoluído progressiva e lentamente para o esquema da celebração do Morte do Senhor em 6ª feira Maior que a Liturgia romana ainda hoje utiliza. Primeiro: leitura da Palavra, seguida de algum silêncio; depois: preces; finalmente, distribuição da eucaristia reservada do domingo anterior.

Há, pois, aqui algumas coisas a salientar. Primeiro. O destaque dado à Palavra de Deus. No silêncio da oração, é Deus que fala, nós escutamos. Posso evocar a saída do Profeta Samuel?: “Fala, Senhor, que o teu servo escuta” (1 Sm 3, 10). Mas não fala só através da Palavra fixada por escrito: “O Povo de Deus… esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações em que participa juntamente com os homens de hoje quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus” (GS 11). Isto é, Deus fala também nos e através dos acontecimentos. O jornal pode ser, portanto, também, ponto de partida para a oração. O jornal, isto é, a vida. Daqui vem aquela indicação de Bonhöeffer: Bíblia numa mão, jornal na outra. De facto, “as alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos homens de hoje” coincidem com as dos discípulos de Cristo. No entanto, a Igreja deu sempre maior atenção à Palavra escrita que ao que acontece historicamente. Seria sobretudo o Vaticano II a resgatar “a autonomia das realidades terrestres” (GS 36).

Com o tempo, a Liturgia criaria três esquemas de leitura contínua da Escritura postos à disposição de todos os cristãos e de todas as comunidades: um é o dominical; outro, o dos dias da semana (a folha dominical indica-o; pode ser feita no teu “quarto mais secreto e, fechada a porta”); e um terceiro é o do Breviário dos monges e clérigos, a chamada Liturgia das Horas, que, depois do Vaticano II, tentaram pôr na mão dos leigos a par da missa diária!, mas sem resultado, e para a qual, hoje em dia, nem sequer há celebrante. (Apesar de hoje haver muito mais missas que em meados do século passado!)

No seguimento do Vaticano II, apareceu, sim, em muitas comunidades novas ao tempo, uma reunião semanal de oração partilhada.

Na Serra nascente assim aconteceu: nas 5.as feiras passou a reunir-se um grupo considerável de pessoas num tempo de oração mais silenciosa que falada, uma leitura bíblica, um tempo de meditação porventura partilhado, preces, a distribuição da reserva eucarística guardada do domingo anterior, e casa que amanhã é dia de trabalho!

As pessoas vinham, vinham, vinham; mas há 40 anos que passaram a vir cada vez menos, até que nos perguntamos se tem sentido…

Nada decidido, tudo interrogado…

Arlindo de Magalhães, 18 de Setembro de 2016

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