Visita Pastoral de D. Manuel Linda

“O bispo tem confiança nesta comunidade, por isso incentivo, continuem…”

Homilia de D. Manuel Linda no cinquentenário da Comunidade da Serra do Pilar

O absoluto de Deus e uma Igreja com futuro

No dia comemorativo do cinquentenário do nascimento desta Comunidade da Serra do Pilar, a liturgia interpela-nos com textos bíblicos profundos e exigentes. A primeira leitura, construída à base do pregão muito forte e implicativo do «Shemá Israel» -“Escuta, Israel”- é um repto a abrir bem os ouvidos para que a rotina não conduza ao embaciado de uma fé que pode ter deixado ténues reminiscências de Deus, mas que já não Lhe dá guarida no coração e na existência. Recitado todos os dias como oração da manhã e da noite pelo judeu piedoso, este brado e o texto que se lhe segue lembra três realidades fundamentais: ao contrário das fantasias politeístas de todos os outros povos, para Israel, o centro da fé reside no absoluto de Deus, afirmado como “o único Senhor” que não admite rivais; o consequente amor que lhe é devido, expresso no cumprimento rigoroso dos mandamentos de Moisés; e a certeza de que a promessa de vida e felicidade se realizará, o que suporta e acalenta a grande virtude da esperança.

Jesus, no Evangelho, confirma tudo isto. E acentua algo que, não sendo absolutamente desconhecido dos judeus, tem de ser trazido para o centro, pois tinha sido afastado para as periferias da fé: o amor ao próximo. De facto, na lei de Moisés, o próximo era só o familiar ou membro da mesma tribo; para Jesus, o próximo é toda a mulher e todo o homem, incluindo os inimigos: “Amai os vossos inimigos”. De resto, este duplo preceito do amor nem sequer figurava no mesmo livro da Lei: o amor a Adonai é referido no Deuteronómio e o amor ao próximo consta do Levítico. A grande novidade de Jesus é juntar em uma única realidade a dupla face do amor, tal como numa moeda ou medalha.

Dou graças a Deus porque, não obstante os ânimos e desânimos inerentes à história, nos seus cinquenta anos de vida, esta Comunidade da Serra do Pilar se tem caraterizado pela afirmação do absoluto de Deus, por manter viva a esperança do cumprimento das suas promessas e por fazer do amor, mormente o amor social, o referente necessário que deriva da fé. Nascida no contexto otimista e empolgante do pós-Concílio, encontrou no Catecumenato a forma de abrir os ouvidos a este “Shemá, Israel”. Sem se tornar elitista ou sectarista e apenas dar abrigo a uma minoria esclarecida. Tal não aconteceu porque a força do Espírito abre as portas que nós teimamos em fechar, como na manhã límpida e cristalina do Pentecostes. Daqui a vossa bela palavra de ordem: “Porta aberta e mesa posta”.

Não me sendo possível referir todos os aspetos que desejaria, devido à escassez do tempo, neste vosso processo existencial e formativo gostaria de referir três âmbitos, que constituem outras tantas colunas onde assenta uma Igreja com futuro: a iniciação cristã ou catecumenato; o lugar dos leigos na Igreja e o consequente princípio da sinodalidade; e o mundo como lugar teológico ao qual somos enviados como fermentadores. 

O pressuposto da cristandade, de que quem nascia em terra cristã era cristão, está mais que desmentido pela realidade. O Cristianismo de tradição desapareceu. Hoje, é cristão apenas aquele que se disponibiliza a fazer a passagem do homem velho para o novo, que tem a sua perfeição em Cristo, numa progressiva mudança de mentalidade e costumes, com suas consequências eclesiais e sociais. No fundo, é a passagem de uma fé inicial para uma outra cada vez mais adulta, convicta e comprometida. É fomentar o encontro pessoal com Jesus e com o Evangelho de maneira mais intensa, através de uma experiência fascinante que leve a uma adesão, comunhão e intimidade plena com Ele.

Depois, o lugar do leigo na Igreja. O Vaticano II, afirma solenemente que os leigos, incorporados a Cristo pelo Batismo, são parte insubstituível do povo de Deus e participam no múnus profético, sacerdotal e real de Cristo. Ora, «uma Igreja sinodal é uma Igreja na qual todos os fiéis, que gozam de uma igual dignidade, caminham juntos, em comunhão uns com os outros. Cada um é convidado, segundo a sua vocação específica e carisma, a participar ativa e efetivamente na missão comum da Igreja. Como discípulo-missionário, cada um é chamado a anunciar o Evangelho onde quer que esteja e, assim, a ser corresponsável pelo destino da Igreja em caminho». Mas é isto que vemos no dia-a-dia? Infelizmente, não. Então há que limar as arestas. Estas tanto podem estar do lado de um clericalismo que pretende eternizar o seu estatuto, como da parte do comodismo e do não- te-rales dos leigos, habituados a delegar no padre os assuntos da fé e da Igreja. Mas esta é diálogo e participação de todos, sem que o clero se laicize nem os leigos se clericalizem.

Finalmente, o mundo, qual tarefa urgente. Os leigos vivem e expressam o sacerdócio comum dos fiéis na participação da vida da Igreja, mas não menos no compromisso no mundo. Guiados pelo Evangelho, é sua missão fermentar a sociedade, antecâmara do Reino de Deus, na santidade e na justiça. Pelo seu testemunho e carismas, manifestam Cristo aos outros e constroem a “civilização do amor”, mediante um desenvolvimento integral, de rosto humano. Em união com os seus Pastores e em espírito de sã autonomia, bem a partir do coração do mundo, são chamados a transformar a sociedade e a inserir nela o sal que dá sabor e a luz que faz ver a beleza do Evangelho. Nesta linha, sei que têm sido meus aliados diretos na campanha de restituir o Domingo à sua dimensão religiosa e familiar e evitar que os centros comerciais constituam a única meta do “passeio dos tristes”, como alguém já disse. Continuemos, pois esta é uma questão civilizacional.

Irmãs e irmãos, celebramos cinquenta anos de vida e missão. Deus compense os muitos leigos e alguns sacerdotes que a ela se dedicaram. Da parte destes últimos, para além do atual Presidente, o caro P. Serafim, não posso esquecer o saudoso P. Arlindo. Mas outros também colaboraram, como o P. Crespo ou mesmo o P. Leonel. Agradeço-lhes. E incentivo cada um de vocês a dar corpo ao grande mote do Sínodo, segundo o Papa Francisco: comunhão, participação, missão.

Que o Espírito de Deus continue a soprar sobre vós.

D. Manuel Linda
3 de Novembro de 2024