No princípio, por um nada se matava um homem: por um rego de água, uma sacholada; hoje, com um tiro em qualquer escola americana ou em qualquer periferia degradada de uma grande cidade europeia, em Paris, Estrasburgo ou Estados Unidos, arma-se um morticínio. É o direito da vingança ilimitada dos tempos bárbaros. Por isso, se alguém matasse um Caim, a morte seria vingada sete vezes (Gn 4,15). Pior ainda: Lamec, um descendente de Caim, poderia ser vingado “setenta vezes sete” vezes por ter assassinado um homem que o houvesse simplesmente ferido e um rapaz que simplesmente o tivesse pisado (Gn 4,23-24).
Depois, houve um grande avanço: a tua vingança será só “olho por olho, dente por dente” (Ex 21,24), isto é, preceituava-se já proporção entre o agravo e a punição. Era a justiça da Lei.
É verdade que, já ao tempo de Jesus, certas correntes do Judaísmo se perguntavam se podia ser assim. E os rabinos judeus de Corinto formularam mesmo, ao tempo de Jesus, a regra de ouro negativa (ou de ferro): não faças aos outros o que não queres que te façam a ti. Mas já conhecemos o caso do samaritano, inimigo, portanto dos judeus como João informa (4,9), que socorreu um outro “que descia de Jerusalém”, portanto judeu, que havia sido assaltado, espancado e abandonado meio morto (Lc 10,29-37).
Mas só o cristianismo soltaria definitivamente as amarras da Lei. Só ele formularia “fazei aos homens o que quiserdes que eles vos façam” (Mt 7,12), a lei de ouro positiva.
Isto é, só o cristianismo englobaria o amor dos inimigos no superlativo amor do próximo: “Ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos perseguem e maltratam” (Mt 5,43-44).
Durante os primeiros anos do cristianismo, o mandamento do amor dos inimigos fazia claramente parte da identidade cristã. O que não foi fácil. Para que não houvesse dúvidas, Lucas, por exemplo, em vez de se pôr com teorias, contava histórias. Duas só, como exemplo. Jesus na Cruz: “Pai, perdoai-lhes que não sabem o que fazem” (Lc 23,24); e Estêvão, a ser apedrejado até à morte: “Senhor, não lhes leves em conta este pecado” (At 7,60). O amor aos inimigos não era uma regra jurídica, mas uma atitude característica e distintiva dos discípulos da primeira hora.
Nem se pense que foi fácil. As primeiras dificuldades que se colocaram aos cristãos vieram mesmo dos judeus: nesta guerra, a primeira vítima foi Estêvão. Depois foi o Império. Mesmo assim, paradoxalmente, Paulo escreveu: “recomendo principalmente que se façam súplicas, orações e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos aqueles que têm autoridade, para que tenhamos vida pacífica e tranquila, com toda a piedade e honestidade” (1 Ts 2,2).
Mas então? É que não se ama um amigo como um inimigo. E se o amor de um familiar ou de um amigo é questão de sentimentos e de ações, o do inimigo é uma questão de perdão, e de outras ações.
O Antigo Testamento não tinha dúvidas: “vossos inimigos cairão à espada diante de vós” (Lv 26,7). O cristão é chamado a fazer doutra maneira, como recomenda Paulo, citando aliás um dos últimos livros do Antigo Testamento (escrito apenas uns 200 anos antes de Cristo): “Não pagueis a ninguém o mal com o mal. (…) Se o teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer, se tem sede, dá-lhe de beber. Fazendo assim, amontoas carvões em brasa em cima da sua cabeça” (Rm 12,17-20, citando Pr 25,21-22), isto é, dás-lhe a volta. O cristão não destrói (não mata) o seu inimigo, trabalha pelo seu futuro: ele quer ganhar o adversário, qualquer que ele seja. O amor aos inimigos não é uma simples resistência passiva, embora tenha sido um moderno a apontar uma atitude correta, numa expressão hoje já consagrada: luta não violenta. Não menos dura, não menos difícil. Ele que lutou com ela morreu às mãos dela. Estou a falar de Gandhi. “Ó meu Deus!”, foi a única coisa que se lhe ouviu, já prostrado com três tiros.
Tudo isto são as teorias. Depois na vida, elas apertam e a gente não sabe muitas vezes como fazer.
Há guerras que são para ganhar doutra maneira, de uma maneira muito mais difícil. Mas que é a única maneira de ganhar. Porque será que S. Paulo disse: “façamos o bem a todos os homens, mas sobretudo aos irmãos na fé” (Gl 6,10)?
Arlindo de Magalhães, 24 de fevereiro de 2019