Se bem que nenhum de nós tenha lido a Bíblia de fio a pavio, há na Bíblia textos mil vezes escutados: um deles acaba de ser lido, mais uma vez, o do banquete no cimo do monte, uma das mais belas peças da literatura mundial.
Antes de estender a toalha, convém saber que 1,5 capítulo antes, o primeiro dos três Isaías (o Livro de Isaías foi escrito por três profetas chamados todos Isaías) escreveu uma primeira série de vaticínios, de juízos cósmicos, que haveriam de cair sobre a humanidade.
Um pouco o que acontecera a Noé: “A Terra estava, diante de Deus, corrompida e cheia de violência. … Vou exterminá-la — disse Deus — … Tudo quanto existe sobre a Terra desaparecerá!” (Gn 6, 11.13).
Digamos que Isaías se inspirou no Génesis:
“A Terra está deserta e dispersados os seus habitantes, leigos e sacerdotes, escravos e senhores, senhoras e suas servas…, o vinho novo está fraco e a vinha murcha, … cessou a alegria dos tambores, acabou o ruído dos foliões, calou-se a cítara e as bebidas sabem a amargo… a cidade cai aos pedaços e as casas estão fechadas, e na cidade só há escombros. [Mas, como no dilúvio] Levantar-se-á a voz do mar, o terror; a cova e a mentira é o que vos espera, habitantes da Terra, … abrem-se as cataratas lá do alto, a terra cambaleia e treme, move-se e contorce-se…, pesa sobre ela o seu pecado…” (Is 24).
Mas, outra vez Iavé se condoeu do seu povo, como no dilúvio: “Não voltarei a amaldiçoar a Terra por causa do homem nem a castigar os seres vivos. Enquanto subsistir a Terra, haverá sempre sementeira e colheita, frio e calor, Verão e Inverno, dia e noite” (Gn 8,22).
E tal como aconteceu na terra corrompida do tempo de Noé, agora Deus promete também a todos os povos uma festa, o tal banquete escatológico do fim dos tempos, de “boas carnes e vinhos preciosíssimos. E de toda a terra desaparecerão as lágrimas e tudo quanto oprima o povo. Alegremo-nos e rejubilemos, que a mão do Senhor pousará sobre este monte” (Is 25,10).
No meio desta visão profética, podemos perguntar que cidade é a que anda por aqui, cidade que cai aos pedaços e onde apenas há escombros. É Babilónia, a grande cidade ou região para onde haviam já sido trasladados os mais destacados habitantes de Jerusalém, homens e jovens, quando, no ano 587 aC, foi tomada e destruída por Nabucodonosor.
Babilónia era o nome de uma região e da cidade mais evoluída do mundo naquele tempo. Banhada pelos rios Tigre e Eufrates (na Mesopotâmia > meso+potamós, no meio de 2 rios, o Tigre e o Eufrates), foi ali que nasceram a Escrita e o Direito. Teria surgido por volta do ano 1750 aC. Por mais de 1.000 anos, Babilónia foi a senhora, estendeu-se, deu cabo da Judeia, de Jerusalém e do seu Templo, e levou os deportados para a Babilónia. Mas, em 539 aC, cairia derrotada por Ciro, rei persa que libertaria os judeus no exílio: “Um homem chamado Ciro conquistaria Babilónia e libertaria os judeus” (Is 44,28 e 45,1).
Neste primeiro mundo de riqueza e de luta — Noé, Nabucodonosor, Ciro, David e Salomão, etc, e Mesopotâmia, Suméria, Caldeia, Assíria, Babilónia, Jerusalém, etc — o profeta percebe que, de facto, só um banquete de “todos os povos” (Is 25,6)…, permitam-me, só uma ONU!
A guerra começa aqui e termina lá. Vemos as notícias nos jornais e na TV… Hoje, muita gente morre e a semente da guerra que gera inveja provoca ciúmes, a cobiça no meu coração é a mesma coisa que a bomba que cai num hospital, numa escola, matando crianças – é o mesmo. A declaração de guerra começa aqui, em cada um de nós. Por isso, pergunto: “Como defender a paz no meu coração, no meu íntimo, na minha família?”. Defender a paz, mas não só: edificá-la com as mãos, todos os dias. E assim conseguiremos fazê-la no mundo inteiro. …
Recordo quando começou a tocar o alarme dos Bombeiros, depois nos jornais e na cidade… Isto atraía a nossa atenção para algo que aconteceu, uma tragédia ou outra coisa. E logo ouvi a vizinha de casa chamar minha mãe: “Senhora Regina, venha, venha!’”. E minha mãe saiu a correr, assustada: “O que é que aconteceu?”. E a mulher, do outro lado do jardim, disse a chorar: “A guerra acabou!”» (homilia do Papa Francisco na Casa Santa Marta, em Roma, 2017/02/16).
Foi este o banquete no cimo do monte!
Arlindo de Magalhães, 13 de Outubro de 2017