Testemunho de Paulo Melo, professor de História aposentado e membro do Metanoia, sobre a sua experiência do Catecumenato, que durante largos anos marcou a vida da comunidade.
Aqui na Comunidade Cristão da Serra do Pilar vivi, aprofundei e celebrei a Fé durante cerca de 26 anos, entre 1976 e 2002. Nesta comunidade cresci como pessoa e como cristão.
Por isso, agradeço o convite que me fizeram para agora partilhar convosco quão importante foi para mim essa vivência comunitária, nomeadamente a dinâmica catecumenal.
Permitam-me que antes de nela me deter, recorde umas quantas dimensões da vida desta comunidade que foram para mim especialmente relevantes e que, aquando da morte do Presbítero Arlindo Magalhães tive a intenção de publicar, o que por preguiça nunca cheguei a fazer.
Escrevia então:
“…na Comunidade Cristã da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, adotamos como lema “Ter Rosto e Nome”, tendo como presbíteros Arlindo Magalhães e Leonel Oliveira e posteriormente José Maria Cabral Ferreira, já falecidos. Aí participei numa dinâmica de intensa vida comunitária no Catecumenato, enquanto catecúmeno e posteriormente como responsável pelo módulo de História da Igreja, na atenção aos sinais dos tempos, com um efetivo envolvimento e responsabilização dos seus membros nos desafios da evangelização. O cuidado posto na liturgia e no estudo e meditação da Bíblia contribuíram para iluminar a partir dos valores evangélicos os acontecimentos na nossa vida pessoal e coletiva, no respeito pela capacidade de discernimento de cada um.
Quando o Padre Arlindo se ausentou para o concluir o seu doutoramento em Salamanca, a presidência da comunidade foi assumida por três leigos, sem prejuízo para a vida comunitária. Com alguma frequência eu e outros membros da comunidade fomos desafiados a fazer a homilia”
A permanente atenção à vida, aos acontecimentos locais, nacionais, universais, aos sinais dos tempos, a sua leitura à luz dos valores evangélicos, contribuíam para uma vivência comunitária da fé que não se limitava a uma devoção individual tendo em vista a “salvação da alma”, antes se traduzia numa presença evangelizadora Igreja, Povo de Deus a caminho, procurando pôr em prática as palavras do Senhor “ … eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.” (Jo 10, 10)
A ação no bairro degradado da escarpa da Serra, o compromisso no Bairro da Sé, a campanha contra a abertura do comércio aos domingos, um encontro na garagem, num sábado à tarde, de contextualização histórica do conflito israelo-palestiniano que preparei com a minha amiga Céu Tostão são momentos que recordo deste cuidado em ter presentes as questões da Justiça e da Paz na vida da comunidade, era na formulação de então “destruir o templo e descer o monte”.
A preocupação com o acolhimento daqueles que, vindos de muitos lados, procuravam a Serra para celebrar a eucaristia é outra das características que relevo. Não eramos anónimos, tínhamos rosto e nome, partilhávamos alegrias e tristezas. Como companheiro de caminho mais velho, o presbítero Arlindo partilhava regularmente a refeição com membros da comunidade. O partir do pão eucarístico, gesto que Jesus escolheu para se tornar para sempre presente, era o culminar duma verdadeira vida partilhada, pelo menos assim o desejávamos.
Um núcleo significativo da comunidade vivia no território contíguo em Vila Nova de Gaia. Muitos outros, esse era e meu caso e o da minha família, vinham de territórios vizinhos por reconhecerem nesta comunidade uma outra maneira mais livre, mais comprometida, mais fraterna de viver a Fé. Pessoas de todas as condições sociais conviviam, contribuindo cada um com os seus dons para a vida em comum, sem discriminações.
O cuidado posto na música litúrgica, os concertos, as exposições, nomeadamente a dos 25 anos da Serra e de ordenação do Padre Arlindo, em cuja montagem colaborei, os passeios, as conferências e mesas redondas muito contribuíram para alargar os horizontes culturais dos membros da comunidade. Homem culto e inquieto, em diálogo com a pensamento e as artes contemporâneas, especialmente o cinema, Arlindo Magalhães sempre cuidou, com o envolvimento de muitos membros da comunidade, de promover um ambiente cultural variado e enriquecedor.
No que me diz respeito, não posso deixar de evocar a bênção do meu casamento com a Graça. Ambos divorciados, vimos o nosso casamento abençoado pelo presbítero e pelo padre José Maria Cabral Ferreira numa celebração já antes ocorrida em circunstâncias idênticas, o que comprova a sua ousadia pastoral, sem ficar refém de códigos incompatíveis com as vicissitudes das vidas: “O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado. Assim, pois, o Filho do homem é Senhor até mesmo do sábado” (Mc 2, 27-28).
Muito do que relembro procede diretamente do Catecumenato, isto é, duma formação consistente na Fé cristã na sua vertente católica, proposta a adultos a que muitos acorreram enquanto fundamento da vivência comunitária.
A dignificação dos sacramentos, não pagos, a começar pela eucaristia não banalizada em celebrações diárias, a consciência da Igreja como Povo de Deus a Caminho com a consequente igualdade entre todos os crentes, sem distinções hierárquicas, a atenção aos sinais dos tempos, com reconhecimento da autonomia das realidades terrenas, a vivência ecuménica regular, em especial com a Igreja do Torne, a prioridade aos mais pobres, tudo isto tem como fundamento o Catecumenato, uma vivência adulta da Fé.
Era um caminho exigente, de quatro anos, com encontros semanais e pequenos grupos de oração. Não se tratava de doutrinação ou “pastilhas de informação”, mas de um consistente percurso de formação com guiões elaborados pelo presbítero em que se estudava a História da Salvação, os Sacramentos, a construção do Ano Litúrgico e a História da Igreja. Divididos em pequenos grupos tínhamos um tempo regular de oração que nos aproximava e ajudava a ser comunidade.
Fui catecúmeno. Faltou-me um ano em que trabalhei fora. Fui também formador no módulo de História da Igreja, seguindo sempre o guião estabelecido pelo presbítero.
O meu jeito, sempre imperfeito e à procura, de ser cristão, os meus conhecimentos sobre a Bíblia, a organização da Igreja Católica e a sua História procedem, em grande parte do percurso que fiz enquanto catecúmeno e animador do Catecumenato na Serra do Pilar, bem como da participação em toda sua vida durante 26 anos.
Nem tudo é perfeito, as comunidades cristãs são constituídas por pessoas com virtudes e defeitos, onde, por vezes, sobrevêm conflitos e mal-entendidos que perturbam o sentido de pertença. Não cabe neste momento de celebração dos 50 anos da comunidade analisar as circunstâncias que me levaram a mim e a muitos outros membros a procurar outros caminhos. Espero que este meu testemunho possa contribuir para renovar a vida desta comunidade na fidelidade aos princípios que a fundamentam.
Celebro na Paróquia da Antas de que faço parte, sou associado do Metanoia – Movimento Católico de Profissionais e são experiências em que me empenho e dão sentido à minha vida, mas para mim, o que vivi na Serra foi o que mais se aproxima do que intuo serem as primeiras comunidades cristãs, animadas pela esperança do Reino anunciado e vivido por Jesus Cristo, mas também elas passaram por tensões e confrontos.
Paulo Melo
Vila Nova de Gaia, Mosteiro da Serra do Pilar, 29 de setembro de 2024
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