Testemunho de José Sequeira, elemento da Igreja Lusitana do Torne (Comunhão Anglicana), sobre a experiência da relação ecuménica com a Comunidade.
Permitam-me que comece por citar o salmista:
“Que alegria quando me disseram:
‘Vamos à casa do Senhor!’.
Os nossos passos se detêm às tuas portas, ó Jerusalém.
Jerusalém, cidade bem construída, harmoniosamente edificada,
Onde sobem as tribos, as tribos do Senhor, como testemunho para Israel, para louvarem o Senhor”
(Sl 122,1-4).
É, de facto, com muita alegria que, tal como as tribos que sobem a Jerusalém, hoje, como muitas vezes o faço, subi o monte que nos dá acesso a este Mosteiro onde esta comunidade, que desde já felicito, há cinquenta anos, se reúne para louvar o Senhor. E, juntamente comigo, trago a saudação muito carinhosa e calorosa de toda a comunidade da Paróquia de São João Evangelista – Igreja do Torne e do Pároco, Presbítero Jaime Dias. Trago também uma palavra amiga de D. Jorge Pina Cabral, Bispo Diocesano e companheiro de muitos anos da nossa caminhada conjunta.
Comunidade que, num contexto difícil de um conturbado período político-social com as inerentes rupturas e respectivas dores de crescimento, se instalou neste belo e histórico Mosteiro, oferecendo, desta forma, um espaço de acolhimento que apostava numa actividade pastoral inovadora, pretendendo redescobrir “o rosto verdadeiro da Igreja, enegrecido, talvez escondido, por poeira de séculos”, conforme afirmou o Presbítero Arlindo quando, no dia 3 de Novembro de 1974 tomou posse e onde a Bíblia e a vida das primeiras comunidades cristãs se tornariam referências fundamentais. Sim, basta lermos o Livro de Actos dos Apóstolos para tirarmos ilacções da Igreja do I século e ver como ela nos fornece instrumentos necessários para o nosso tempo. Esta Comunidade, fugindo dos esquemas pastorais predominantes, ousou mergulhar no contexto da Igreja primitiva, mudando, assim, o paradigma da percepção de compromissos dominantes na realidade eclesial, o que a levou a enfrentar novos e nem sempre fáceis desafios. O singular trabalho pastoral, mas de grande alcance, não deixou de ser um risco, conforme o próprio P. Arlindo reconheceu. Mas, as incertezas em que então se vivia na sociedade portuguesa apontavam para mudanças de paradigmas.
E, nesse contexto, não podia faltar a formação laical através de, entre outros, o curso de catecumenato, que se tornou o centro de experiência pastoral. No final do Evangelho de hoje (Mc 10,2-16), Jesus troca as voltas aos Seus discípulos ao acolher com amor e ternura as crianças que lhe trouxeram. Com isto, Jesus está-lhes a dizer que no centro da Sua comunidade devem estar sempre os mais pequenos, os mais frágeis, os mais débeis. Sim, devemos ter a ternura, a inocência e a pureza das crianças. Mas, ser como criança não é ser infantilizado. Não é ser imaturo, e muito menos ter fé de criança, mas, antes, ter fé de adulto e ter consciência que tudo, absolutamente tudo, nos é dado pela graça de Deus.
Foi esse o objectivo dos cursos de Catecumenato, onde o ensino da fé destinado a adultos e a formar cristãos adultos na fé, fornece instrumentos para aprofundar o mistério pascal de Cristo descrito nas Escrituras e percebê-lo dentro da História da Salvação, bem como a capacidade crítica da sua leitura e a consequente tomada de consciência da definição da Economia da Salvação, construindo, assim, a dimensão comunitária da fé. É o alimento sólido da realidade de que nos fala Santo Agostinho num dos seus sermões (cf. Sermão 21.3).
Mas, a Comunidade não estava voltada exclusivamente para si, pois o empenhamento social é uma das suas características marcantes. “O fundamento”, conforme há cerca de duas semanas, em representação desta Comunidade, o nosso irmão em Cristo e meu bom amigo José Campos afirmou ao programa Sociedade Civil da RTP, “é descer o monte, pois o nosso lugar é no mundo, na construção de um mundo melhor que é o projecto divino”. Isto é nem mais nem menos do que amar o Senhor, servindo os homens. É pôr a capacidade pastoral ao serviço dos mais necessitados, dos que sofrem, dos que são marginalizados, ligando, assim, a Palavra de Deus à Vida. É o que os nossos irmãos ortodoxos chamam a liturgia após liturgia. É aquilo que, nós anglicanos, dizemos em oração no final da Eucaristia: “Pai todo-poderoso (…) envia-nos ao mundo, no poder do Teu Espírito, a fim de vivermos e trabalharmos para Tua honra e glória” – LIL p. 121).
E foi neste contexto de descer o monte que o P. Arlindo fez, ainda nos anos setenta do século passado, uma visita à Igreja do Torne para dar a conhecer a então recém-formada comunidade da Serra. Foi recebido pelo Cónego Guedes Coelho, também já falecido, que lhe abriu as portas de par em par, criando, desde logo, oportunidades de actuação conjunta, desenvolvendo alguns projectos de acção solidária. Permitam-me que, tendo sido o P. Arlindo um grande cinéfilo, cite a frase que Humphrey Bogart no papel de Rick Blaine dirige ao capitão da Polícia Louis Renault no final do filme Casablanca: “Isto é o começo de uma bela amizade”.
Não sei se disserem um ao outro esta frase, mas foi, de facto, o ponto de partida de uma bela, leal e fraterna amizade na caminhada conjunta das nossas duas comunidades. Para além de eucaristias celebradas em conjunto (algumas delas bem documentadas na exposição fotográfica patente nesta Igreja) em dias mais ou menos significativos quer para uma, quer para outra comunidade, reuniões de preparação (com o nosso irmão em Cristo e meu querido amigo Adelino Rosa sempre presente em representação da Serra), reuniões de Oração mensais ora na Serra, ora no Torne, caso único no país, que duraram ininterruptamente desde o Oitavário de Oração pela Unidade dos Cristãos em Janeiro de 1980 até à crise da pandemia em Março de 2020 e ainda não retomadas por circunstâncias várias.
Podemos, a Comunidade do Torne e a Comunidade da Serra, estar meses sem nos encontrarmos, mas nada muda na nossa amizade. Quando nos encontramos é como se o tempo não tivesse passado. Contudo, devemos continuar a caminhar juntos, nos mesmos ou em outros moldes pois, “a unidade da Igreja é um facto perpétuo; a nossa tarefa não é criá-la, mas dar testemunho dela” (William Temple, Arcebispo de Cantuária de 1942 a 1944). Por outro lado, a concepção de “caminhar juntos é um processo no qual a Igreja, dócil à acção do Espírito Santo e sensível em acolher os sinais dos tempos, se renova continuamente e aperfeiçoa a sua sacramentalidade para ser testemunho credível da missão a que foi chamada” (Papa Francisco – XVI Assembleia Sinodal).
Faço votos de que aprofundemos o desejo de cooperação de tal forma que abramos mais e mais as portas àqueles que nos procuram, conforme o testemunho que recebemos e que passaremos aos vindouros e, desta forma, alcancemos cada vez mais pessoas, levando-lhes a esperança outorgada por Nosso Senhor Jesus Cristo.
“O Senhor abençoa os que n’Ele confiam”. Assim reza o v. 4 do salmo 128 (127) indicado para hoje. Que o Senhor abençoe as nossas comunidades.
José Sequeira
Vila Nova de Gaia, Mosteiro da Serra do Pilar, 06 de outubro de 2024
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