Testemunho do arquiteto José Nobre, sobre o espaço litúrgico e algum do mobiliário criado expressamente para a Comunidade.
Pela gentileza e condescendência do Padre Arlindo de Magalhães, foi-me dado o privilégio de, há cerca de 40 anos, deixar aqui uma marca pessoal, ao conceber 4 peças, do mobiliário deste espaço litúrgico. Enquanto aqui estiverem, farão parte da história desta singular comunidade (de que me sinto um filho espiritual) e serão participantes desse “memorial” que, a cada Domingo, a cada Páscoa se renova, fazendo da Igreja um legado que se projeta no futuro. Citando o primeiro versículo do Salmo 90, “Senhor, Tu tens sido o nosso refúgio, de geração em geração!”
Cumpre-me, então, falar-vos destes móveis – “da partilha fraterna”, da “mesa da eucaristia”, do “ambão” (ou “mesa da palavra”) e do “crucifixo” – em função deste espaço onde, um a um, foram criteriosamente dispostos. A estas quatro peças haveria de acrescentar-se, um pouco mais tarde, o suporte do “círio pascal” desenhado pelo meu colega de profissão e bom amigo José Carvalho, filho do mestre carpinteiro que as executou; e os estrados sobre os quais se elevam as mesas e o lugar da presidência. Relativamente a estes últimos, porém, nada saberei dizer-vos pois são posteriores à minha passagem por aqui (entre 1979 e 1983).
Para falar deste conjunto, convido-vos a sair das paredes do Templo, para observarmos, do Alto, a Cidade! A Serra do Pilar ergue-se no cruzamento do Douro com a longa avenida que parte de Santo Ovídio, atravessa o rio sobre a belíssima Ponte de D. Luís e prossegue, já sem a mesma determinação, até à Igreja dos Congregados. Enquanto cruzamento de artérias – uma fluvial e outra viária – esta localização geográfica é, em si mesma, a representação da Cidade, de uma cidade qualquer: porque toda e qualquer Cidade é um lugar de encontro, um lugar de trocas, de experiências e de interações sociais… Mas, porque aqui chegamos depois de uma subida, depois de um esforço, este lugar concreto tem uma vocação natural para nos fazer parar, descansar, contemplar e restabelecer. Ora, antes que estes móveis fossem desenhados e construídos já a Comunidade era, essencialmente, isto: uma Casa, de “porta aberta e mesa posta!”, como ainda hoje, a si mesma, se define.
Como a Cidade, a Comunidade da Serra do Pilar é, por natureza, um lugar de Acolhimento e de Encontro; é um ponto de chegada e um ponto de partida!
Quando aqui entrei, pela primeira vez, creio que no ano de 1979, em busca de refrigério e de esclarecimento, já o espaço litúrgico estava assim ordenado, se bem que com um mobiliário bem mais precário. Não me foi difícil, então, perceber que era no cruzamento das linhas de força, do espaço circular, que estaria a estrutura dos dois primeiros móveis que concebi: o da “partilha fraterna”, que datará de 1981 e o da Eucaristia, do ano seguinte. O primeiro tem quatro faces iguais, é pesado como um túmulo que cala as nossas renúncias e foi ali pousado, no cruzamento das entradas e das saídas. É discreto mas apelativo. Por sua vez, a mesa da Eucaristia, em forma de “masseira”, pretende invocar aquele tão belo versículo (9) do Salmo 34: “Saboreai e vede, como o Senhor é bom!…”. Seguiu-se o “crucifixo”, em 1983: uma estrutura de madeira, um tanto leve, de que a figura de Cristo procura erguer-se, convidando-nos a fixar, no Seu, o nosso olhar! Por fim, o Ambão, de 1984: um “face a face” com o lugar da presidência (são, ambos, lugares de proclamação), cujo desenho segue as linhas da “masseira” eucarística, por se tratar, afinal, de uma “mesma” mesa, ainda que, neste caso, a Mesa da Palavra!
Como homem de cultura, o Padre Arlindo instituiu, na Serra do Pilar, uma comunidade catecumenal, isto é, uma comunidade que “aprende”, uma comunidade que lê, uma comunidade que estuda! Por isso, a organização do espaço litúrgico, como aliás de toda a liturgia, sempre constituiu, para ele, uma oportunidade de ensino, uma catequese. E é por causa desse legado (deste legado) que hoje, aqui sentados, ao contemplarmos a sobriedade deste granito secular, sentimos que as pedras, os móveis, os objetos litúrgicos, tudo e todos nos falam, nos interpelam e, discretamente, connosco celebram a centralidade do Mistério pascal: “Felizes os que O reconhecem ao partir do pão!”.
A primeira leitura e o Salmo, deste XXX Domingo, do Tempo Comum (Ano B) falam-nos de um “regresso” jubiloso, do povo de Deus, a Casa. Assim me sinto eu de cada vez que aqui volto! Mas também aqui aprendi que não nos devemos acomodar! Antes somos convidados a “descer o Monte” para vivermos, qual fermento, o Tempo Comum, dos dias comuns! Então, o meu desejo, a minha oração, vai no sentido de vos propor que não nos fiquemos pela nostalgia dos tempos passados! Pelo contrário: que aquilo que aqui vivemos e, como hoje, continuamente experimentamos, sejam o alimento que nos projeta para o futuro, para a Missão, na Cidade e no Mundo.
Que assim seja!
José Nobre
Vila Nova de Gaia, Mosteiro da Serra do Pilar, 27 de Outubro 2024