As comunidades, quaisquer que sejam, são como as pessoas: todas iguais, todas diferentes. Se têm vida, cada qual tem a sua peculiaridade. Se a não têm, são cadáveres.
A de Jerusalém, por exemplo, foi sempre particularmente sensível aos pobres: “tinham tudo em comum “ (At 2,44) e “entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. A de Antioquia que era uma cidade pagã, embora ali se tenham refugiado muitos discípulos de Jesus, fugidos à perseguição que se armou em Jerusalém (At 8,1). Em Corinto, a grande comunidade dos tempos apostólicos, cidade cosmopolita e de uma imensa riqueza cultural, riquíssima em carismas e ministérios, mas que viveu porventura desafios maiores que qualquer outra (1Cor 1,10).
E Roma? Foi na capital do império que tombaram as duas colunas da Igreja, Pedro e Paulo. Mas não foi por isso que a Igreja “que preside na região dos romanos” emergiu no contexto das muitas Igrejas que já existiam. Não, foi porque “aliviais a pobreza dos necessitados e apoiais os irmãos que vivem nas minas”, escreveu Dionísio de Corinto, bispo, numa carta enviada à Igreja de Roma, ali pelo ano 170. Este é o verdadeiro bilhete de identidade da Igreja de Roma.
Quantas comunidades mais? Éfeso (“conheço tão bem as tuas obras, as tuas fadigas e a tua constância”, (Ap 2,1), Esmirna (“és pobre, o que é uma riqueza!”, Ap 2,9), Pérgamo (“minha testemunha fiel”, Ap 2,12-13), em Tiatira (“Conheço as tuas obras a tua fé e a tua dedicação”, Ap 2, 2,19), Sardes (“tens fama de estares viva mas estás morta”, Ap 3,1), Filadélfia (“tu guardaste a minha palavra”, Ap 3,8), Laodiceia (“não és fria nem quente, és morna”, Ap 3,15).
E quantas mais?
Por tudo isto é que “o Espírito do Senhor encheu o universo”, ele que ”dirige o curso dos tempos e renova a face da terra com admirável providência” (LG 26). Por isso é que “em toda a terra os homens serão estimulados à esperança viva para que finalmente sejam recebidos na paz e na felicidade infinitas, na pátria que refulge com a glória do Senhor” (GS 93).
Porque o Espírito do Senhor é derramado sobre toda a terra, sobre toda a carne e sobre todo o tempo é que Jesus pôde dizer ao escriba: “Não estás longe do Reino dos Céus!” (Mc 12,34). E não disse ele ao centurião?, um pagão: “Nunca em Israel encontrei semelhante fé!” (Mt 8,10)?, acrescentando de seguida: “Muitos virão, do Oriente e do Ocidente sentar-se à mesa com Abraão, Isac e Jacob, no Reino do Céu” (Mt 8,12)? E a Zaqueu, não acabou também por chamar-lhe “filho de Abraão” (Lc 19,9)? E não foi um soldado romano o primeiro a reconhecer que “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!” (Mc 15,39)? E de Cornélio, outro centurião, outro pagão, não nos dizem os Atos dos Apóstolos que, muito antes de ouvir falar de Jesus, já levava Deus a sério, tanto que as suas orações e esmolas subiam à presença de Deus? (At 10,2 e 4). É melhor parar por aqui pois que os Atos dos Apóstolos, para contarem como os discípulos de Jesus se abriram progressivamente aos pagãos, narram mais acontecimentos que reflexões. Cumpria-se a profecia: “Muitos virão, do Oriente e do Ocidente…”.
É que “o Espírito sopra onde quer” (Jo 3,8). O Espírito de Deus não está aprisionado por nada, nem amarrado a nada. Deus está em toda a parte – aprendemos no catecismo – e com ele o seu Espírito, que é Espírito de Deus. A misteriosa realidade do Espírito Santo, que é o Espírito de Deus e de Jesus — ele “procede do Pai e do Filho”, como diz o Credo —, não se deixa manipular por nenhuma Igreja nem por nenhuma teologia, por nada nem por ninguém.
Durante muito tempo, na Igreja, as coisas passaram-se como se o Espírito de Deus fosse dado apenas a alguns, e muito poucos. Aos outros competia apenas obedecer aos monopolistas. Mesmo assim, foi sempre muito difícil explicar certas coisas: chamassem-se Francisco de Assis ou Ozanam, João XXIII ou o apelo dos pobres e dos sinais dos tempos. O Papa Francisco é um exemplo claro: por isso sofre uma oposição por vezes frontal. Já quando o Papa Leão XIII (1878-1903) falou das “Coisas Novas” (Rerum Novarum), pela Igreja adiante muitos ou até quase todos rezaram pela sua conversão!
Como difícil foi, no Ocidente, perceber “o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 2)! Ou não acreditamos que o Espírito é dado às Igrejas? Por isso há muitas coisas que “competem às comunidades cristãs” (OA 3) mais que aos cristãos tomados individualmente. Não me sai nunca da cabeça o que diz o Livro dos Atos (15,28) a propósito das resoluções tomadas em Jerusalém: “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós…”. João explicaria: “O dom do Espírito permanece em vós. Não tendes por isso necessidade de que ninguém vos ensine. O Espírito que recebestes de Jesus ensina-vos todas as coisas. E ele é verdadeiro e nele não há engano” (1 Jo 2,27). Está aqui refletido o difícil equilíbrio entre a dimensão institucional e carismática da Igreja: e nenhuma delas pode abafar a outra. Por isso, nunca esquecer quanto, de Mateus a Paulo, de João ao Apocalipse, se nos diz como, na Igreja apostólica, havia consciência de que o Espírito era dado às comunidades.
Estas coisas não se acreditam sem mais; experimentam-se e por isso se acreditam, “Viu e acreditou” (Jo 20,8): no crer, o ver é muito importante, como já notava o evangelista João.
Ao longo da nossa história – Serra do Pilar – temos visto muitas coisas. Será a nossa cabeça coisa assim tão importante para as explicar? Embora com uma afirmação seca, sequíssima, das mais esqueléticas do Credo (o que é significativo), eu “Creio no Espírito Santo”.
As comunidades, quaisquer que sejam, são como as pessoas: todas iguais, todas diferentes. Se têm vida, cada qual tem a sua peculiaridade. Se a não têm, são cadáveres.
Uma breve (outra) palavra
Já São Paulo explicava aos Romanos (6,3-6) que o Batismo é uma espécie de representação da morte e ressurreição de Jesus.
Assim como ele morreu na cruz e desceu depois à terra no sepulcro, donde seu Pai, o Deus de Israel, o retirou ressuscitado para uma vida nova, assim o batizado, mergulhado na água, morre para o homem velho e ressuscita homem novo, para uma vida nova a viver à luz de Cristo e dele revestido. Precisamos, portanto, de água, causadora de morte, é verdade, mas elemento fundamental para que haja vida, de roupa branca, que signifique tanta novidade, e de luz, que seja sinal de Cristo.
Isto é o Batismo. Isto celebrava a Igreja, nos seus primórdios, na grande noite pascal. Isto começou a fazer a Igreja na manhã do primeiro dia pascal, quando começou a batizar os recém-nascidos, filhos de cristãos.
Arlindo de Magalhães, 9 de junho de 2019