Nunca compreendi, e continuo a não compreender, por que razão estão alguns textos bíblicos carregados de exageros e paradoxos. Hoje, de Isaías a Mateus, uma meada de estranhezas e excessos! Quem acredita verdadeiramente que se pode comprar sem dinheiro? Ou então, quem acredita, na sua lucidez, que se pode dar de comer a cinco mil homens, sem contar mulheres nem crianças, com cinco pães e dois peixes? Confesso-nos, talvez, da nossa grande falha estrutural: há em nós um apetite obsessivo pela luta contra o caos. Não é estranho, por isso, que quase todas as cosmogonias do mundo antigo, do Oriente ao Ocidente, estejam tecidas sobre a trama desse combate (Chaoskampf). Quem não tem dinheiro não pode comprar o que quer que seja. Quem somente tem cinco pães e dois peixes não pode dar de comer a cinco mil homens, a não ser que nos esteja a falhar o alcance de sentido dos textos.
Sobre um outro texto do Evangelho segundo Mateus [cf. Mt 21, 33-43], José Augusto Mourão escrevia: «Alimentamo-nos de ficções, de sonhos, de visões. E de parábolas. Entre o ser e o dever ser corre um rio, quase sempre intransponível. O Somnium Scipionis [o Sonho de Cipião, um texto de Cícero que abre também a uma visão de excessos] é a visita diária de quantos passam este mundo entre estas duas margens. O crente, porém, ao contrário do fanático, é aquele que procura, que interroga, no “temor e no tremor”, como diria Kierkegaard, as margens dos seus sonhos». A 4 de Julho de 1942, um mês particularmente tenso da vida de Etty Hillesum, um ano e meio antes da sua morte em Auschwitz, assim destilava a sua confiança no excesso: «Cada camisa lavada que vestes é ainda uma espécie de festa. E cada vez que te lavas com um sabonete bem cheiroso numa casa de banho, que é só para ti durante meia hora, também». Etty vivia entre margens.
O autor dos textos do Deutero-Isaías também. Margens que Rainer Maria Rilke topografou: «Entre a máscara do nevoeiro/ e a do verde da verdura,/ eis o instante sublime em que a natureza/ se desnuda mais do que lhe é habitual.// Olhem para a beldade! Reparai nos ombros/ e na luminosa franqueza que não usa de pudor…/ Será coisa breve – o Verão vai compor a cena/ luxuosa onde ela vai desempenhar outro papel». Trago aqui a estranheza da natureza que se desnuda mais do que lhe é habitual com a mesma intensidade com que recito o versículo sagrado de Etty: Cada camisa lavada é ainda uma espécie de festa. Ou então de Isaías: «Todos vós que tendes sede, vinde à nascente das águas. Vós, que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei. Vinde e comprai, sem dinheiro e sem despesa, vinho e leite». Isaías antecipou, pelo paradoxo, a largueza do Reino.
O décimo quarto capítulo do Evangelho segundo Mateus não é uma fábula, como as de Esopo. É uma parábola-em-ação – diria. Não tem uma moral, portanto. Introduz, muito mais do que potenciaria uma estória moralizante, uma rutura na ordem da visão. As estórias moralizantes, tal como as lentes que nos receitam os oftalmologistas, têm por função corrigir as disfunções da nossa perceção visual, ajustando, com precisão canónica, o nosso olhar àquilo que se consegue ver com o sentido da visão. Mas o autor do Apocalipse viu novos céus e nova terra [cf. Ap 21, 1]! Tal como a parábola-em-ação – diria eu – do Evangelho segundo Mateus: «Ordenou então à multidão que se sentasse na relva. Tomou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao Céu e recitou a bênção. Depois partiu os pães e deu-os aos discípulos, e os discípulos deram-nos à multidão. Todos comeram e ficaram saciados. E, dos pedaços que sobraram, encheram ainda doze cestos. Ora, os que comeram eram cerca de cinco mil homens, sem contar mulheres nem crianças». As parábolas do Reino, que antecedem este capítulo evangélico, falam fundamentalmente de largueza. Esta narrativa também. Diz do excesso a que todos somos chamados. Tenho um amigo, cuja mãe, ao jantar, colocava sempre sobre a mesa um prato a mais. À estranheza dos filhos, perante o excesso, respondia sempre com a gramática da graça: Nunca se sabe quando Cristo nos entra pela casa adentro! O mesmo é dizer: Cinco peixes e dois pães, para cinco mil homens, sem contar mulheres nem crianças!
A partilha, que seria a costumeira hermenêutica moral desta narrativa evangélica, somente vale, se antecedida for pela liberdade que dá corpo ao desassombro de uma vida teologal que se converte à largueza do Reino, onde todos têm lugar à mesa. À mesa, há sempre lugar para mais um. Essa é a utopia cristã. Sim, utopia: tem lugar em lugar nenhum. Tem lugar mesmo onde aparentemente não há lugar. Deus nos salve da obsessão pela ordem, aquela que não sabe que cinco pães e dois peixes podem alimentar cinco mil homens, sem contar mulheres nem crianças! Talvez aí possamos recitar, com intensidade, comoção e verdade, Isaías, Mateus ou o final do Ardente Texto Joshua, de Maria Gabriela Llansol:
bem-aventurados os alucinados, porque deles será o real
bem-aventurados os desiludidos, porque neles o pensamento se fará humano
bem-aventurados os corpos que morrem, porque deles será a sensualidade do invisível
bem-aventurados os desesperados, porque deles será a restante esperança
bem-aventurado sejas tu, ó texto, porque nos abres a geografia dos mundos
bem-aventurada sejas tu, ó Terra, porque tua será a explosão que levará o vivo a todo o Universo
José Pedro Angélico