A carta de Santiago alerta exatamente os primeiros cristãos para o perigo de uma religião que não leve a sério os valores do Evangelho. A palavra da Escritura é para ser vivida no dia-a-dia. O cristianismo não é uma lista de formalidades e obrigações piedosas. O cristianismo é uma opção, uma escolha; e a comunidade, um espaço onde o cristão realiza e pratica essa sua opção, juntamente com irmãos e irmãs. “Ponde em prática a Palavra e não sejais seus simples ouvintes, como quem se engana a si próprio. (…) A religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições e guardar-vos de toda a mancha do Mundo” (2,23 e 27).
O Livro do Deuteronómio – que Jesus conhecia bem – propõe uma série de princípios éticos orientados para criar laços de solidariedade, equidade e justiça. Porém, no século I da nossa era, isto é, no tempo de Jesus, o Judaísmo estava já preso pelas formalidades: sabemos, como dizia acima, do que se passava com o Sábado, com o Templo, com as esmolas, com os leprosos, etc. Lavar ou não as mãos antes de comer, por exemplo, deixara de ser uma simples norma de higiene para se converter numa outra que decidia quem era religioso e quem era pecador. Nós, os cristãos, não nos podemos rir deles: todos sabemos que, ainda no tempo dos nossos pais à sexta-feira se comia peixe e não carne, sob pena de pecado também! As religiões tinham e têm muitas vezes interditos morais que são simples preocupações de ordem higiénica (lavar as mãos e os pés, não comer carne de porco ou qualquer outra uma vez por semana, não beber álcool em excesso, não ter relações sexuais com consanguíneos mesmo afastados [razão de ser do tolo da aldeia])…
A tentação de canonizar os objetos, os rituais, os espaços, mesmo o tempo, não pode levar a pensar que a essência da relação com Deus está nos protocolos culturais, nos interditos morais e na prática de observâncias morais, mas não nos valores fundamentais (para nós, cristãos, o Reino de Deus e o mandamento novo).
Pensou-se, até ao tempo dos nossos pais, que o essencial da religião – de uma religião – estava no cumprimento de obrigações ou formalidades rituais: cristianismo, por exemplo, ouvir missa inteira nos domingos e festas de guarda, ou, no Islamismo, não comer carne de porco. Este pensar existia já no Povo judaico e em muitos outros Povos de Deus. Sabemos o que se passava no Judaísmo com o Sábado. Ainda hoje em dia, se uma pessoa se atreve a questionar certos costumes ou tradições religiosas e a propor alternativas coerentes com o Evangelho, rapidamente pode ser acusado de estar a desviar-se da autêntica doutrina. No entanto, já Isaías punha na boca de Deus que “as vossas celebrações e as vossas festas, estou cansado delas, não as suporto mais. … Cessai é de fazer o mal e aprendei a fazer o bem” (1,14.17).
Apesar deste pensar, anunciar a justiça e vivê-la no dia-a-dia, essa, sim, é a exigência fundamental das Escrituras judeo-cristãs. Os rituais, as prescrições, as cerimónias, podem ajudar-nos no caminho que leva a Deus, mas não o perfazem. Por essa razão, a exortação que, na 1ª leitura de hoje, Moisés dirige ao seu povo centra-se na necessidade de uma opção clara pelo Deus da Liberdade e da Justiça. Foi por isso que Ele o tirou do Egito. “Escutai, israelitas, as leis e preceitos que hoje vos ensino, a fim de os pordes em prática” (Dt 4,1).
Os primeiros cristãos experimentaram também o formalismo e o ritualismo. Mas depois de um tempo de fervor e dedicação, os ânimos começaram a ceder e a comunidade cristã viu-se rapidamente atada a costumes e tradições do passado, perdendo-se progressivamente a dimensão da fraternidade e da identidade.
Jesus – e a Liturgia de hoje – convida-nos a descobrir que a essência do cristianismo está na decisão de participarmos na construção do Reino de Deus vivendo de acordo com os princípios do Evangelho.
“Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt 6,33).
Arlindo de Magalhães, 2 de setembro de 2018