Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia o pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Duas quadras dum soneto de Camões.
Jacob, o último dos três grandes Patriarcas do Génesis: Abraão, Isaac e Jacob. Não vamos agora visitar esse texto maravilhoso…
Teve 13 filhos o Patriarca, 8 de Lia (um era Judá), com quem casaria, e 4 (entre os quais José) da serrana bela! Mas o seu preferido era José, o que foi vendido pelos irmãos para o Egito (Gn 37,12 ss), para onde iriam mais tarde seus irmãos e o próprio pai (Gn 46). Judá, um dos 13 filhos, opôs-se a esta decisão. Seja como for, a verdade é que ganhou uma certa primazia entre os irmãos; seu pai, já no leito da morte, dir-lhe-ia, na presença de todos os filhos: “o “cetro não te escapará… até que venha aquele a quem pertence o comando…” (Gn 49,10).
12 dos 13 filhos de Jacob originaram 12 tribos, cada um a sua. Uma tribo era um pequeno povo que tinha território, alguma organização e uma, digamos, tradição. Portanto, 12 dos 13 filhos de Jacob deram origem a 12 tribos, as 12 tribos de Israel (Levi não entrou nesta conta porque lhe coube o trabalho do Templo — os levitas — e respetivo serviço religioso). Aconteceu, porém, que, com a invasão assíria, as tribos desapareceram todas, menos a de Judá.
Do nome Judá nasceram os Judeus. Mas Jacob tinha outro nome. Chamar-se-ia também Israel, isto é, “lutador com Deus”. Em Penuel, ele lutaria, uma noite inteira, com algo ou alguém que começou por pensar que seria um homem mas que verificou depois ser um anjo ou mesmo o próprio Deus (Gn 32,25-33). Por isso, os seus descendentes passaram a chamar-se judeus ou israelitas.
O que pretendia Jesus quando se rodeou de um grupo de 12?
Antes de mais nada, todos viram naquele grupo um símbolo real e vivo das 12 tribos de Israel, os 12 ramos do povo que entroncava em Abraão, Isaac e Jacob. Este pequeno grupo de 12 discípulos que passou a acompanhar Jesus era o sinal do novo Israel, uma espécie de motor de arranque de um mundo novo através do qual o reino de Deus chegaria aos confins do mundo. Associados por Jesus à sua missão de anunciar a chegada de Deus ao mundo dos homens, a curar as pessoas e a atender aos mais frágeis e mais pobres, os Doze iam pôr em movimento a verdadeira restauração de Israel.
Ao verem passar 12+1 por aquelas aldeias da Galileia, levantava-se entre as gentes como que um sonho longamente acarinhado por muitos: o de verem Israel — que ao tempo tinha já sido dividido em dois reinos, o do Norte (a Samaria e a Galileia) e o do Sul (Judá) — absolutamente desfeito mas depois refeito e reunido num só reino. Os profetas tinham apontado nessa direção: Iavé levantará o seu estandarte diante das nações para juntar os exilados de Israel e reunir os dispersos de Judá dos quatro cantos da Terra (Is 11,12). Jesus, porém, apontava não uma restauração étnica ou política, mas uma presença libertadora de Deus, a começar pelos doentes, pelos marginalizados da sociedade do seu tempo e pelos pecadores.
Este procedimento – chamar discípulos – era prática corrente ao tempo. Muitos outros o faziam. Estranho era que Jesus tivesse escolhido gente tão rasca, tão do fundo da sociedade, e não gente culta e rica! E logo pescadores e camponeses pobres!
A verdadeira novidade estava no ambiente que se criava à roda de Jesus. A sua presença enchia tudo. O mais importante era ele, a sua vida, o mistério que dele decorria: ele acolhia, ele curava, ele perdoava, ele libertava de todo o mal, fosse ele qual fosse, doença ou vida escandalosa, marginalização ou pecado. O modo como falava de um Deus bom, pai de todos, amigo da vida, que devia ser feliz e não maldição ou castigo. Ouviam-no contar histórias da vida corrente, a tentar explicar como deveriam ser as relações dos homens entre si e com Deus. Já não era preciso matar bois nem pombas no templo, oferecendo-os assim, mortos, a Deus em sacrifício, o que alimentava um negócio infame dentro e fora da Casa de Deus, que enriquecia alguns ou muitos, sacerdotes, desde logo, e negociantes de gado!
Com ele, muitos iam aprendendo a entender a vida de outra maneira. Contrariamente ao que lhes ensinavam e obrigavam a fazer, ele deixava que os leprosos se aproximassem, tocava-lhes até como a gente toca um amigo ou um familiar. Iam também percebendo que, aqui e ali, se levantavam conflitos, nomeadamente com os fariseus e os conterrâneos, com as autoridades políticas ainda não; Roma o que queria era que não houvesse problemas e, enquanto isso, tudo bem. É verdade que à sua volta se ia juntando gente muito diferente e maltrapilha, mulheres de má nota, algumas. Mas ele ia dizendo a uns Vai em paz (Jo 14,27) e a outros Não temais (Mt 10,28; Jo 6,20; Jo 12,15). E tudo isto ia suscitando algo de indefinível, mas muito novo.
Para Jesus, aquele grupo era chamado a ser símbolo de uma coisa nova a que ele dava o nome – percebê-lo-iam mais tarde – de Reino de Deus (ou dos céus). Naquele grupo se começava a viver como Deus queria realmente. Tudo gente simples e pequena, grãos de mostarda (Mc 4,31), fermento (Mt 13,33) difícil de ver, mas que podia transformar aquela sociedade. E qualquer coisa, de facto, começava a acontecer.
Antes de mais nada, aquele grupo não se dobrava diante de ninguém, muito menos diante de César (Mt 22,21). Não pagavam impostos (Lc 23,2), porque não tinham nada de nada; não ligavam às leis do longínquo imperador, porque cumpriam era a vontade de Deus (Mc 3,35). Jesus não usava nem sinais nem palavras imperiais, contava era histórias da vida mais normal e corriqueira daquele tempo: a moeda perdida (Lc 15,8-19), a rede dos pescadores (Mt 13,47-50), a semente e a cizânia (Mt 13,24-30), a videira (Jo 15,1-8), etc. E falava-lhes num mandamento novo: Amai-vos uns aos outros…
Ah! E ainda outra coisa. Parece que eram uma gente alegre. Homens e mulheres tinham deixado tudo para o seguirem: falava-lhes de um “tesouro escondido” (Mt 13,44) e de uma “pérola preciosa” (Mt 13,45-46) que tinham descoberto. Mas era do Reino dos Céus que eles falavam, e do Reino dos Céus que, pouco a pouco, iam descobrindo. Com estas e com outras, não porque ele, o Senhor, lhes dissesse para fazerem assim ou assado, mas porque tinha sido assim que eles começaram a fazer, iam-se desprendendo daquelas leis malucas que há milénios oprimiam os judeus: um dia, era Sábado, estavam com fome, iam a passar ao lado de um campo, não sei se de trigo se de centeio, e toca de fazer uma coisa que era muito feia, proibidíssima, era Sábado!: apanharam umas espiguitas para comer (Mc 2,23-27). Não que fosse considerado um roubo. Não era! Não se podia era fazer aquilo ao Sábado, porque era Sábado! Imagine-se! Mas Jesus nem precisou de lhes explicar muito para eles perceberem que aquilo era uma estupidez!
Claro que tudo isto que eles iam descobrindo e vivendo era preciso sair a anunciá-lo e a contá-lo pelas aldeias em redor. Anunciar o Reino de Deus, partilhando com todos uma experiência que eles estavam a fazer e que lhes modificava as vidas por completo, ao mesmo tempo que espalhavam a paz junto de doentes e de marginalizados, gente que não podia já com o fardo da vida.
Que Deus era este que estava a surgir, a revelar-se, a dizer quem era? E quem era este homem que o anunciava e ensinava? Era um Deus contra Iavé, o Deus de Israel, ou era o próprio Deus, em pessoa e em forma humana, a dizer quem era?
Arlindo de Magalhães, 12 de Julho de 2015