A Bíblia — plural de biblos > livro — é a coletânea de uns livros por onde passa a história religiosa ou espiritual de um povo.
Todos os povos ou culturas estabeleceram uma relação com Deus, melhor ou pior, mais pacífica ou mais complicada. O Vaticano II reconheceu que:
“Desde os tempos mais remotos até aos nossos dias, encontra-se nos diversos povos uma certa perceção daquela força oculta presente no curso das coisas e acontecimentos humanos e até, por vezes, o conhecimento de uma divindade suprema ou mesmo de Deus-Pai. Esta perceção e este reconhecimento penetram as vidas dos mesmos povos de um profundo sentimento religioso. … A Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e de viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, refletem não raramente um raio de verdade que ilumina todos os homens… [E] não pode esquecer que foi por meio do povo judeu, com o qual Deus se dignou, na sua inegável misericórdia, estabelecer a Antiga Aliança, que ela recebeu a revelação do Antigo Testamento e se alimenta da raiz da oliveira mansa na qual foram enxertados os ramos da oliveira brava, os gentios. Com efeito, a Igreja acredita que Cristo, nossa Paz, reconciliou pela sua cruz os judeus e os gentios, de ambos fazendo em si mesmo um só [povo]” (NA 2 e 4).
O Antigo Testamento – a Bíblia cristã divide-se em duas partes, o Antigo (judaico) e o Novo (cristão) Testamentos – trata da história e da aventura de Israel. O adjetivo judaico vem de Judá, um dos 12 filhos do patriarca Jacob, cuja descendência ou tribo assumiu uma grande preponderância entre as mais 11.
Desta grande história – que é religiosa e espiritual e não [apenas] política ou nacionalista – recordámos, nos dois últimos domingos, as figuras de Noé e de Abraão; hoje, os elementos pedagógicos, assim lhes chamo, a Lei e o Templo.
Não vou fazer agora a história deste Povo que, seguindo o seu Deus, ora lhe voltava as costas, ora caía nos cultos pagãos.
O nosso Deus não pode abandonar o seu povo.
É neste contexto que entenderemos a 1ª leitura da Liturgia de hoje, tirada do Livro das Crónicas, que tem dois volumes. O primeiro faz a pré-história e a história de David, dando especial relevo à sua atuação como rei e aos preparativos por ele levados a cabo para a construção do Templo de Jerusalém. O segundo faz a história de seu filho Salomão e dos reis que se lhe seguiram até à desgraça da perda da independência e da deportação para a Babilónia, atual Iraque. O Livro termina praticamente com o trecho hoje lido, que resume as razões da desgraça acontecida ao povo: surdo aos apelos dos profetas, o Povo eleito voltara entretanto as costas ao próprio Deus, retornara aos cultos pagãos: orgulhava-se, é verdade, do edifício faustoso que era o Templo, mas entregava-se à opressão e à injustiça. Com todas essas infidelidades acabou por preparar a cama em que havia de se deitar: a perda da independência e o exílio para a Babilónia.
Será que – pensou depois Israel – Deus se esqueceu do seu Povo, mergulhado em tamanho desastre? Mas não prometera ele – a Noé – que nunca mais o castigaria assim? Será que Deus não é fiel ao que promete? E, de facto, Iavé ajudou Israel a levantar-se. Primeiro, purificou-o através de um cruel sofrimento; depois, reforçou a própria Aliança prometida a nossos pais (Lc 1,55) através de Ciro, o rei persa que, vencendo os babilónios que tinham escravizado o Povo de Israel, permitiu que ele voltasse à sua terra: quem fizer parte do Povo do Senhor, Deus do céu, ponha-se a caminho [de Jerusalém] e que Deus esteja com ele.
O Livro das Crónicas, que em grego se chamava Paralipómenos, palavra que quer dizer as coisas esquecidas, foi provavelmente escrito para os israelitas regressados do exílio que, por isso mesmo, ignoravam quase tudo da sua história passada, embora muitas coisas estivessem já disseminadas por outros livros bíblicos. Eles precisavam de conhecer sobretudo o tempo glorioso de David e de seu filho Salomão. E o autor não se cansa de sublinhar que, no passado e no futuro, os êxitos do Povo dependiam da sua fidelidade a Iavé.
É um Deus muito interventor e condicionador da História, este que manobra em favor do seu povo escolhido, o que nem se estranha muito numa conceção teocrática do mundo e da mesma história. Por isso, o autor entende como resultado do querer de Deus em favor de Israel uma distribuição nova do poder político então criado no Médio Oriente, já naquele tempo constantemente instável: a Babilónia, que erguera um grande império, anexara Israel e deportara o seu povo, é agora vencida pela Pérsia, o que permitiu que o anteriormente vencido povo de Israel voltasse ao seu país.
Este é ainda um Deus manobrador de cordelinhos. De qualquer modo, não é um Deus que abandona o seu povo. E por isso o Livro deixa em aberto uma hipótese: a de que, regressado do exílio, o Povo recupere as glórias do seu passado.
Ainda agarrado à memória do Templo derrubado por Nabucodonosor, o rei da Babilónia, o povo, regressado à sua terra, vai construir um Templo novo em Jerusalém, entre os anos 520-515. Mas, o Senhor do Universo, o Deus de Israel, previne: “Endireitai os vossos caminhos e emendai as vossas obras e eu habitarei convosco neste lugar. Mas não vos fieis em paleio!” (Jr 7,3).
Arlindo de Magalhães, 11 de março de 2018