O movimento de Jesus

Henri-Matisse, ‘The snail’, 1953

Quem é que Jesus escolheu por companheiros? Quem foram os primeiros que o seguiram? Gente sem influência e sem meios, sem títulos de Saber ou de Ter, gente pobre ignorante, à primeira vista incapaz de grandes voos e de arriscados planos, gente pequena e sem ambições… Assim nasceu o chamado “movimento de Jesus”.

Pedro bem o haveria de avisar, numa premonição a que a História posterior viria a dar razão: “Afasta-te de mim que sou um homem pecador!” (Lc 5,8).

De facto, entre a vocação de Isaías, o Profeta, clarificada no meio de Serafins e vozes divinas (ver cap. 6 do Livro de Isaías), e a (já referida) vocação de Pedro vai toda a distância que separa o Antigo do Novo Testamento. E, no entanto, tanto um como o outro — Isaías e Pedro — rebentaram ambos com os cânones oficiais da Lei e da Religião: nem o Profeta nem o Apóstolo receberam a vocação por descendência carnal ou por sucessão clerical. Tanto um como o outro foram chamados fora dos quadros da instituição.

Então, a Lei e a Instituição são más? Sim, se escravizarem o homem e não lhe permitirem o crescimento. Foi o que aconteceu à Antiga Aliança. Por isso, um dia Jesus recordou uma coisa que ainda hoje sabemos evidente: que “o Sábado foi feito para o Homem” (Mc 2,27). É que, no tempo de Jesus, as coisas tinham chegado a tal ponto que parecia exatamente o contrário: que o Homem tinha sido feito para o Sábado.

Nem a Lei nem a Instituição são más. Mas porque podem tornar-se más é que, do “movimento de Jesus” liderado pelos Apóstolos, nasceu e se organizou a Igreja Apostólica à qual, por contributo do Espírito, “o Senhor Jesus deu início” (LG 5).

Os últimos Concílios têm-se esforçado por melhorar a teologia e reformar os seus desenvolvimentos históricos, à luz daquele princípio sempre aceite na Tradição cristã que diz que «Ecclesia semper reformanda» (a Igreja deve estar sempre em a reformar-se).

Todos sabemos que coadunar a prática do dia-a-dia com os princípios (temporais ou doutrinais) é coisa sempre muito difícil. Que o digam as famílias, os casais, os namorados, os amigos, as empresas, os partidos, as nações, os clubes, a sociedade em geral, tudo. No princípio, parece tudo fácil e um mar de rosas. Mas o dia-a-dia faz-se sempre – no melhor dos casos – com duros debates e rupturas, com confrontações e afrontamentos, e – no pior dos casos – com guerras e destruições, tribunais, divórcios, corte de relações, “é mesmo necessário”!, dizia Paulo.

Assim é na Igreja ou assim é a Igreja. Entre os Apóstolos houve dificuldades imensas, resistências impensadas, eles que possuíam carismas e dons únicos e originais. E como poderia tudo isto não ter existido ao longo da sua história, como poderá isto não existir no nosso tempo?

Em situação de divergência de opinião, de debate aberto ou mesmo de procura séria e esforçada da verdade, é preciso apenas que se respeite aquela regra com que Agostinho, Bispo de Hipona, esclareceu tudo, numa das suas célebres «bocas»: No certo, Unidade; no incerto, Liberdade; em tudo, Caridade.

Não se pense que na Igreja está tudo bem: por isso mesmo, «Ecclesia semper reformanda». Se assim não fosse, arriscar-nos-íamos a canonizar o pecado como os Judeus canonizaram o Sábado. É que o homem, seja ele qual for, não existe para a Igreja; a Igreja é que existe para o Homem.

Os debates na Igreja. A importância do debate na Igreja. A necessidade do debate na Igreja. Não era muito mais simples que a Igreja não tivesse de seguir a Lei da Humanidade?

Mas “a Igreja peregrina, enquanto instituição humana e terrena, reconhece com humildade os erros e pecados que obscurecem nos seus filhos o rosto de Deus e está decidida a continuar a sua acção evangelizadora, para ser fiel à sua missão, com a confiança posta no seu Fundador e no poder do Espírito” (Puebla 209, 3ª Conferência dos Bispos sul-americanos, 1979).

O Papa Francisco, que era um bispo sul-americano, escreveu já assim: “Sonho com uma opção missionária — refere-se à Igreja — capaz de transformar tudo, costumes, estilos, horários, linguagem e toda a estrutura eclesial…, pequenas comunidades [até, que] são uma riqueza da Igreja que o Espírito suscita para evangelizar todos os ambientes e sectores. Frequentemente trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de dialogo com o mundo” (EG 27.29).

Não poderei esquecer aquele dia, tarde ou manhã, já não sei, estava eu a ler pela primeira vez, um documento — Evangelização — acabado de sair das mãos do Papa (hoje já São) Paulo VI que dizia assim, era Dezembro de 1975: “(pequenas comunidades) Nascem da necessidade de viver mais intensamente a vida da Igreja, ou do desejo e da busca de uma dimensão mais humana do que aquela que as comunidades eclesiais mais amplas dificilmente poderão revestir, sobretudo nas grandes metrópoles urbanas contemporâneas, onde é mais favorecida a vida de massa e o anonimato ao mesmo tempo”(58).

São Paulo VI, ora pro nobis

Muita coisa, já vinda e a vir, acontecida depois de eu ser ordenado presbítero, há 51 anos! Coisas com que sonhei ou ia sonhando.

E quanto mais e com que facilidade acontecerá que muito mais ocorrerá na Igreja de Jesus no próximo cinquentenário!

Arlindo de Magalhães, 10 de fevereiro de 2019