Se o mundo europeu estava muito mal — o século XIV tinha sido “desgraçado” — a Igreja estava pior.
Primeiro, desde 1054 que a Igreja estava partida em duas: a ortodoxa e a romana, num Cisma dito “do oriente” (skisma, palavra grega > separação). Os cabeças das Igrejas ocidental e oriental, Roma e Constantinopla, excomungaram-se mutuamente. Até hoje, apesar de todos os perdões! Depois, num período de 40 anos, 1378 e 1417, outro cisma, este “do Ocidente”. Houve neste tempo dois Papas ao mesmo tempo. A França acusava que o Papa era sempre e só romano — e o papa foi viver para Avinhão, na França; a Itália apareceu logo a dizer que Papa só em Roma, e logo arranjaram outro que ficou em Roma. Dois Papas, cisma do Ocidente.
Dentro da Igreja, de resto, na Igreja de Jesus!, o padre era o único cristão: o leigo não tinha, não podia, não sabia, ninguém o ensinava, ele só tinha que fazer o que os clérigos mandavam; os leigos cumpriam sem perceber porquê nem para quê.
Os leigos eram uma desgraça mas os Papas eram pior, preocupados apenas com os estados pontifícios e com as suas famílias. A sua vida moral nem dela se deve falar aqui. Tinham filhos que depois eram cardeais e coisas do género… Os papas não eram papas, eram militares e políticos…, eram apenas papas-reis ou reis-papas.
E tinham os cristãos que fazer muitas coisas para se salvar: muitas devoções piedosas, culto de santos, relíquias, peregrinações, jejuns, sacrifícios, rezas, as 1as sextas feiras chegaram mais tarde… Mas já havia Purgatório que “purgava” os pecados até à sua eliminação completa… Só assim as almas podiam chegar à presença de Deus.
Mas mais. Em vida, os cristãos podiam enviar pontos para as almas do Purgatório. De cá (deste mundo) ajudavam-nas assim a sair de lá (do Purgatório); mas podiam também depositá-los na sua conta, o que lhes permitia libertar-se mais depressa do fogo do Purgatório, se lá caíssem. Para isso, já se celebravam muitas missas, é verdade. Mas surgiu então outra maneira de acumular pontos.
Roma queria e estava a construir os palácios da Renascença.
À volta do papado, cardeais e patriarcas, bispos e arcebispos, abades e monsenhores, prefeitos apostólicos, prelados e vigários, todos queriam era rendas (dinheiro). Formação teológica não existia, tudo vivia na incultura, na ociosidade, no concubinato.
E o pobre homem ou mulher, ainda se não chamava leigo nem leiga, se viviam preocupados era a sua salvação, a salvação da sua alma: Céu, Inferno ou Purgatório? É aqui que começa o individualismo, como disse já na semana passada: eu quero é salvar a minha alma; tu arranja-te como puderes! Neste quadro histórico ressurgiram as novas indulgências.
Os papas de Roma, cidade em ruínas, quiseram fazer nela um céu na terra. Que ainda hoje existe: Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, Botticelli, Rafael, Bramante, capela Sistina, etc, etc, etc. Mas como pagar isto tudo?
Já à missa só se assistia, portanto dela não participava a assembleia (enquanto o padre botava a missa, os nossos avós rezavam o terço!); já a Bíblia não se lia, que ninguém sabia latim e ela não se podia traduzir para as línguas vernáculas porque tinha muitas coisas que… (eu ainda sou do tempo em que o IX Canto d’Os Lusíadas também não se podia ler nem imprimir em livros escolares).
Tempos de muitas estupidezes!
A questão das indulgências, hoje, é difícil de explicar e entender.
Na Igreja primitiva havia três pecados que impediam a comunhão com Deus e com os irmãos: o homicídio, o adultério e a negação da fé. Para ser readmitido na comunidade, isto é “na Igreja”, o penitente tinha de converter-se (tempo houve em que tinha de fazer um catecumenato penitencial de anos muitos, de meses então, etc).
Esta dura exigência …, 1º) alargou a lista de pecados, 2º) mas também amoleceu a dureza do tempo penitencial. E a Igreja começou a ter indulgência com o pecador. Esta palavra latina tem uma amplitude muito grande, mas é aqui um sinónimo de condescendência, de tolerância.
Estávamos no século XVI. E que aconteceu?
Em 1506, o Papa Júlio II (1503-1513) prometeu indulgências — perdão ou abrandamento de certas obrigações penitenciais — a quem ajudasse com dinheiro a construção da basílica de S. Pedro, em Roma. O pior, um verdadeiro escândalo, foi quando no Sagrado Império romano-germânico (digamos na Alemanha) se organizou uma campanha que distribuía indulgências mas exigia que se pagasse uma taxa: um “autêntico negócio pecuniário”.
Contra esta pouca-vergonha, levantaram-se muitas vozes: “A descomposição da Igreja era tal que absolutamente se levantaram vozes em busca do autêntico cristianismo, à procura de Deus e da sua graça; isso implicaria limpar o campo da fé de toda a prostituição”.
Mas o nosso Lutero não disse que a salvação depende unicamente da fé e da graça de Deus (solus Deus, sola fides, sola gratia: os três solus de Lutero).
Daqui nascerá uma nova conceção da Igreja. A Hierarquia, o sacerdócio ministerial, o Papado, não têm razão de ser. Lutero dirá mesmo que este último é “uma invenção do Diabo”.
Rejeitada a Igreja podre, visível e institucional, começa a perceber-se que era necessário voltar à Bíblia (nem todos saberão que a imprensa nascera em 1445, 38 anos antes do nascimento de Lutero: o primeiro livro impresso por essa “épica invenção” foi a Bíblia, que rapidamente se espalhou por todo o mundo e que permitiu que se voltasse à Sagrada Escritura!).
Tudo isto na busca de «“um povo novo”, o “novo povo da fé”, nascido da água e do Espírito Santo, povo cuja cabeça é Cristo, povo que cresce e se aperfeiçoa no meio de luzes e sombras, de pecadores e santos, de perseguidores e hereges, povo que Deus vivifica e conduz à glória futura» (texto de Lutero).
Arlindo de Magalhães, 5 de Novembro de 2017