Conhecemos toda a carga simbólica que o “pão e vinho” carregam na cultura e na alimentação do Mediterrâneo ocidental: “um naco de broa e um copo de vinho” não se negava nunca a um amigo. No Oriente mediterrânico, porém, já não era assim: lá, era pão e cordeiro que também se chama anho (este cordeiro do rebanho passou depois a “Cordeiro de Deus que tira o pecado do Mundo!”) ou pão e peixe. Nada de estranhar também pois que Jesus tinha já à sua volta antigos pescadores de peixes, então já pescadores de homens (Lc 5,10), que certamente lha falavam dessa arte de pescar.
Ora, uma vez “o dia começava a declinar”, não havia que dar de comer à multidão, mas os antigos pescadores de peixes disseram a Jesus que tinham ali cinco pães e dois peixes — não cordeiro — e Jesus, “tomando então os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao céu, abençoou-os, partiu-os e deu-os aos discípulos, para que os distribuíssem à multidão”. A gente conhece bem esta linguagem, esta exatíssima maneira de falar. Não esqueçamos, no entanto, que Lucas não escreveu uma reportagem do que aconteceu; falava era de algo que aconteceu mas utilizando linguagem da liturgia eucarística primitiva. Vejamos um dos textos mais antigos do Novo Testamento: “Eu recebi do Senhor o que vos transmiti. Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu Corpo que é entregue por vós! Fazei isto em memória de mim!”.
Neste texto que acabo de ler (1 Cor 11,23-24) – repito: um dos mais antigos do Novo Testamento – Paulo refere é a prática litúrgica das comunidades primitivas. Lucas conhecia-as bem e frequentava-as. E, por isso, para relatar um episódio e ensinamentos de Jesus, serviu-se de fórmulas que eram de tempos posteriores e sacados da vida e da própria maneira de celebrar das comunidades. Sendo assim, Lucas está a falar de quê? De algo que aconteceu no tempo de Jesus e que ele nos transmitiu em linguagem figurada?
Conta Lucas que a multidão era considerável: “cerca de 5.000 homens”! Deixamos de lado saber se foram contados só os homens-masculinos (os andrés, em grego) ou se todos os humanos (os ántropoi, também em grego), os homens masculinos e os femininos. E não podemos deixar de reparar que Lucas informa que Jesus os mandou sentar por “grupos de cinquenta” (9,14), metodologia certamente avançada para o seu tempo e que Jesus nunca teria experimentado. Os especialistas comentam hoje que, mais do que uma comida para 5.000 pessoas, haveria era umas 100 pessoas ou famílias que estavam na multidão e tinham cada uma um frango assado, a cada uma destas se juntavam mais umas 45 ou 50, partia-se o frango, e antes de comer dá sempre um bocadinho para todos!).
Ou seja: Lucas estaria assim a falar não já do que realmente aconteceu no tempo de Jesus em “um sítio despovoado”, relativamente afastado “de uma cidade chamada Betsaida”, mas do que acontecia em umas (cerca de) 100 comunidades eclesiais locais espalhadas pelo Mediterrâneo oriental, umas 100 comunidades reunidas na comunhão da Igreja católica (é como nós aqui: chega sempre para todos, porta aberta e mesa posta, parte-se, já está). Não é verdade que o nosso conhecido Abercius dizia que na comunidade dele se comia regularmente “um peixe suculento, grande e muito fresco, pescado por uma virgem muito bela: sem cessar, ela [a Igreja] o servia aos amigos juntamente com pão e um vinho delicioso!” De facto, não há dúvida que as expressões usadas por Lucas neste relato são claramente litúrgicas: conhecemo-las de várias outras passagens do Novo Testamento, e, de resto, ainda hoje as usamos na Liturgia, tal como as recebemos do tempo apostólico.
Claro que, com o que aconteceu – informa ainda Lucas -, “todos comeram e ficaram saciados, e, do que lhes tinha sobrado, ainda apanharam doze cestos cheios”. Como podia não ser assim se era da mesa da Palavra que se tratava ou falava, melhor, se era isso que estava a ser servido à multidão faminta quando os discípulos entraram em cena? Isto é: Jesus estava a falar do Reino à multidão (aula teórica), mas faltava a prática. Portanto, porque a Palavra de Deus não é “paleio”, “conversa fiada”, mas se concretiza em ações, toca de dar de comer a todos. Foi o que Jesus fez.
Não era disso que falava Isaías? Embora ele tenha anunciado que a mesa do Reino seria colocada no alto do Monte Sião (25,6), era a mesma que Jesus mandara então pôr em “um sítio despovoado”, relativamente afastado “de uma cidade chamada Betsaida”. As pequenas diferenças pouco importam! Não é verdade que, já no Antigo Testamento, nem” a panela da farinha se esgotou nem o azeite faltou na almotolia” (1 Rs 17,14) quando a viúva de Sarepta partilhou o seu pão com o profeta? E não é verdade também que já quando o profeta Elias matou a fome a cem pessoas com apenas vinte pães, todos “comeram e ainda sobrou” (2 Rs 4,44)? E não sabemos todos, já desde o Deuteronómio, como Jesus depois recordou (Lc 4,4) que “nem só de pão vive o homem mas de tudo o que sai da boca de Deus é que o homem viverá” (Dt 8,3)?
Os mais novos na Comunidade têm de perceber que, quando nos juntamos para comer, ali ao lado, na sacristia ou em dia de Bispo, carregamos toda esta carga simbólica. Ou não disse ele, na véspera da Páscoa judaica: “Fazei isto em memória de mim!”?