Pão e água. Fome e sede. Comprar e vender. Viver ou sobreviver. Partilhar ou (ver) morrer. Tivesse eu que enviar uma mensagem telegráfica de comentário ao que acabámos de escutar e seria algo semelhante a isto que ditaria. Uma vez mais, e como “é costume” nos Domingos deste Tempo dito Comum, é “da vida e à vida”, da sua quotidianidade e simplicidade que a Palavra nos “fala” e para onde nos remete. Palavra de palavras bem conhecidas (por muitas vezes as ouvirmos), mas que sempre nos recordam o essencial. Vejamos se sou capaz de tal “tradução”.
Na primeira leitura, Isaías fala-nos de alimento. Em primeiro lugar, daquele que é essencial e básico à nossa subsistência: da água, que sendo das “nascentes” só pode ser da mais pura e cristalina; do vinho, sinónimo de vida e de alegria para os hebreus e de verdade para os latinos (“in vino veritas”), os mesmos que na referida água, por sua vez, viam a saúde (“in aqua sanitas”, é a segunda parte do mesmo adágio); finalmente, do leite, o “super alimento” por excelência, seja o materno ou “do pacote”, líquido ou em pó… Mas depois Isaías refere uma “outra fome” que nem tais alimentos saciam: a de Deus. Porque “nem só de pão”, há uma “outra fome”, que clama por um “outro alimento”: um “alimento espiritual”, constituído pela Palavra (“Ouvi-me (…) escutai e a vossa alma viverá…”) e fortalecido pela fidelidade, que nos é total e gratuitamente oferecido pelo próprio Deus (ao contrário do outro, o corporal, pelo qual temos que pagar, como o nosso trabalho e dinheiro que dele auferimos). Assim, a “Aliança” que Deus quer estabelecer connosco é, antes de tudo, dom gratuito e total de uma vida plena e feliz; em troca, nenhum dinheiro nem qualquer espécie de despesa; apenas duas palavras e uma atitude: dar graças, e fidelidade.
E, no Evangelho, é o mesmo acento tónico, com mais concretas consequências…
Estamos na presença do conhecido trecho da (primeira) “multiplicação dos pães” (a segunda ocorrerá no capítulo seguinte – Mt 15, 29-39 – onde se referem igualmente um grande número de curas, a fome da multidão, os pães – sete – e “alguns peixinhos”), e todo ele é um relato simbólico: no “local deserto e afastado” vislumbra-se a referência ao Êxodo, e, através desta, à fome e à sede experimentadas pelo povo hebreu na sua travessia… Mas igual e paradoxalmente é ao “maná” do céu enviado por Deus para saciar o Seu povo que o texto aponta: outrora foi Moisés, agora é Jesus quem oferece um novo maná, igualmente reconfortante (ao ponto de os “cerca de cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças” terem comido e ficado saciados) e abundante (pois com as sobras se encheram “doze cestos”, símbolo das 12 tribos, ou seja, todo o povo de Israel a quem este “novo maná” se destina). Jesus é, assim, (pelo menos) tão importante como Moisés… mas certamente mais poderoso que Elias (com quem o haveriam, aliás, de confundir – Mt 16, 14) que alimentou mais de 100 e ainda sobrou (1 Rs 4, 44)… Sentado na relva, qual pastor a guardar as suas ovelhas, ele alimenta aqueles que o seguem, e fá-los saborear do descanso em “prados verdejantes” (Sl 23, 2).
Finalmente, repare-se nos seus gestos, todos eles prefigurativos da Eucaristia: Ele chama os discípulos (para o serviço), Ele toma nas suas mãos os pães, abençoa-os, parte-os e entrega-os aos discípulos (futuros “ministros da comunhão”) para que os repartam pela multidão… Até a referência às “mulheres e crianças” parece ser alusão ao carácter familiar que a Eucaristia deve ter, rompendo assim com as “barreiras sociológicas” que então imperavam…
Mas, ao contrário do que comumente se costuma pensar e dizer, creio que é no início do relato que encontramos o “segredo” deste texto. Reparemos que Jesus, apesar de se ter “afastado para um local deserto” (certamente para chorar, em silêncio, a morte de seu primo João Baptista, de que acabara de ter conhecimento), não manda embora quem vai atrás dele. O seu sofrimento era grande, certamente… mas nem isso lhe toldou o olhar e a sensibilidade diante do sofrimento daqueles que d’Ele se abeiram a pedir socorro, a mendigar a cura das suas enfermidades. Uma vez mais, Jesus mostra-nos que, mesmo quando seria “lícito”, ”normal” exigir(mos) dos outros algum isolamento (em razão do sofrimento que nos atinge), este nunca nos deve permitir que “viremos as costas“ aos nossos próximos: não é no isolamento “do alto dos montes” que a verdadeira paz é alcançada; é no partilhar da dor com/do nosso semelhante que a cura (dele e nossa) acontece…
E é tão forte esta comunhão e tão intenso este “processo de cura” que Jesus nem dá pelo tempo a correr. É por isso que os discípulos O interrompem: “Este local é deserto e a hora avançada. Manda embora toda esta gente …” Ou seja: “já é tarde… não temos que comer nem nada para alimentar esta gente toda… é melhor mandá-los embora… e que cada um se arranje…”. Jesus dá-se conta, uma vez mais, de que nem eles perceberam ainda o que tantas vezes lhes tinha já ensinado… por isso responde com dureza: “Dai-lhes vós de comer!” Diante deste “comprar” (em que ecoa também o texto da primeira leitura), Jesus impõe que se “dê de comer”, pois isso sim é o fundamental: não é o dinheiro com que se compram coisas, mas sim a capacidade, a inteligência, a disponibilidade para tudo fazer de modo a que todos tenham direito ao seu “pão de cada dia” o mais importante. À tentativa da “saída limpa” dos discípulos (“cada um que se arranje”) Jesus responde com a exigência da responsabilização individual: “dai-lhes vós de comer”. Porque aonde poderá ir quem anda “cego de fome”? Como poderá encontrar o caminho certo aquele a quem a fome e a sede turvam o olhar e o entendimento? Já diz o povo: “Casa onde não há pão…”
Mas os discípulos, embora anuindo, continuam céticos: só dispõem de cinco pães e dois peixes. Parece-lhes muito pouco… mas para Jesus é suficiente. As “parcelas” do seu “cálculo” são diferentes: contam sempre com a “Graça”, a graça que brota da partilha, fraterna e desinteressada. Porque quando todos partilham do (pouco) que têm, a fome de todos é saciada. Por aqui – melhor o percebemos agora – passa uma das “lições” essenciais do texto: só uma sociedade humana profundamente “eucarística”, em que todos sejam capazes e estejam disponíveis para partilhar do seu pão com os famintos, tornará possíveis as estruturas, os agentes e as ações necessárias à justa e equilibrada repartição de recursos suficientes para todos. É isto que nos ensinam os povos das margens do rio Nagara (Japão), os andinos de Cusco e Puno (Peru), os pastores Masai do Quénia e da Tanzânia, que juntos caçam ou pescam, juntos trabalham, tudo partilham: do que sabem e podem, e do que a Natureza lhes dá e que eles sumamente respeitam; e, certamente por isso, nas suas comunidades ninguém morre à fome.
Não nos equivoquemos: se vivermos “nos altos dos montes” dos nossos desejos e preocupações, de costas voltadas para os que vivem “cá/lá em baixo” no “vale… de lágrimas” da existência, perderemos a nossa identidade cristã; não seremos fiéis a Jesus; a Eucaristia que (semanal ou diariamente) celebrarmos pouco ou nada valerá, pois será inócua, porque insensível ao “sacrifício do mundo” que, quotidianamente, tais vidas entregam no Altar onde vimos (ou deveríamos vir, precisamente) partilhar o pão e o vinho e, neles e através deles, a Vida…
Por isso, o “grande milagre”, hoje como naquele tempo, não será tanto o da “multiplicação”… mas sim o da “conversão”. Falo do milagre da conversão da nossa sensibilidade, que se quer (mais) atenta, (mais) ativa e (mais) proactiva, responsável e responsabilizante, que nos faça disponíveis para a compaixão diante do sofrimento alheio, principalmente daqueles a quem falta o mais básico/elementar: o “pão de cada dia” e a “dignidade inerente a todos os membros da família humana (…) fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (in “Preâmbulo” da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1948). “Milagre”, porque grande (enorme!) sim, mas feito de “coisas pequenas”: pequenas e singelas iniciativas, totalmente ao alcance das nossas capacidades e competências, para as quais não precisamos (porque não devemos) “ficar à espera de alguém… lá de cima”. Iniciativas concretas, modestas, parciais, certamente… mas gotas de um oceano que só pelas mãos de todos poderá ser vazado…
Foi (e é) desta “conversão” à “fraternidade (d)e proximidade” que a Igreja se fez (e faz) universal. Foi na partilha (do pão e do vinho, dos gozos e das dores, no e do Caminho) que a Europa se fez nova… E há de ser, necessariamente, na mesma partilha (distribuição e retribuição) justa e solidária que a velha Europa se há-de refazer.
Porque o dinheiro, esse, “já está todo feito” (apenas mal repartido, dizem os Economistas). E o pão, esse, há quanto “chegue e sobre” (a Terra assim no-lo diz, e assim o demonstram os relatórios da FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). O que falta então? “Mais flores! Mais flores!”, dizia o poeta… e com razão: que desabrochem novamente as flores da Esperança e da Partilha, da Fé alegre e do Amor operativo, esse tal de que nos fala S. Paulo: o total, o invencível, o pleno, de que nada, “nem a morte nem a vida” nos poderá separar…
É (também) disto que é preciso voltar a “avisar toda a gente”…
Luís Leal, 6 de Agosto de 2017