Tal como há oito dias, também hoje o trecho do Evangelho acabado de ler faz parte de um discurso – de um ensinamento – de Jesus sobre a atitude da comunidade para com o perdão (Mt 18, 6/35).
Mateus começa por converter uma instrução de Jesus num diálogo entre ele e Pedro, instrução que arranca de uma pergunta feita pelo discípulo ao Mestre: “quantas vezes posso perdoar?” (Mt 18, 21-22). À vingança sem limites dos primórdios, Jesus contrapõe o perdão sem limites.
Segue-se depois uma parábola (23-34) que tem pouco a ver com o ensinamento de Jesus. A questão era: perdoar quantas vezes?
A parábola, no entanto, não diz respeito à pergunta anterior – “quantas vezes posso perdoar?” -, antes ilustra o que Jesus tinha dito aos discípulos noutra altura, quando lhes ensinou a oração do Pai-nosso: “perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido (Mt 6,12), pois que ”se perdoardes aos homens, também o vosso Pai celeste vos perdoará a vós” (Mt 6,14).
Mateus explicava então às comunidades proto-cristãs que ele frequentava ou até formara que tinham de levar a sério o ensinamento de Jesus, contido na oração do Pai-nosso: “Pai nosso…: perdoa-nos as nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”.
A isto se chamava, no contexto da cultura judaica, um midrash, um ensinamento edificante, poderíamos até dizer na nossa linguagem moderna, uma homilia edificante. Portanto, uma explicação que não deixasse dúvidas.
A parábola tenta mostrar a necessidade de imitar a misericórdia de Deus: “Sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai” (Mt 5,48), “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36), “Amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem nada esperardes em troca. Então, será grande a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo, porque ele é bom até para os ingratos e os maus” (Lc 6,35).
A parábola utiliza uma linguagem clara e arrasadora. Quem objetaria contra?
Não esqueçamos que Mateus escreve o seu Evangelho para cristãos procedentes do judaísmo. E, no Judaísmo, apesar do que já dizia o Livro do Levítico (19,18) – “Não te vingarás nem guardarás rancor aos filhos do teu povo, mas amarás o teu próximo como a ti mesmo” – e apesar de Tobias – “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti” (Tb 4,15) -, no Judaísmo, dizia, a lei vigente ou a Moral possível era “olho por olho, dente por dente” (Lv 24,20).
Ainda hoje é assim. Mateus dirigia-se a cristãos provenientes do Judaísmo, por volta do ano 80. A esta data, já o processo de separação do Judaísmo e do Cristianismo tinha chegado ao fim. Até já Jerusalém – no ano 70 – tinha sido arrasada pelos romanos. Mateus e a comunidade (judeo-cristã) procedem da Sinagoga, mas estão já em rutura com ela, num tempo em que o Judaísmo oficial, arrasado pelos romanos e sem Templo, intentava calar qualquer movimento dissidente por ele estabelecido, em particular o próprio movimento cristão.
Mateus percebe que a sua comunidade – proveniente do Judaísmo – tem dificuldade em ceder numa questão tão importante como esta do perdão. Por isso, venha ou não a propósito, sempre que pode, afirma-lhes que, para os discípulos de Jesus, é fundamental, é estrutural e radical o perdão: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois ele faz com que o sol se levante sobre os bens e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter?” (Mt 5,43-46).
Eu sei. Eu sei que o perdão é sempre muito difícil. Mas faz parte integrante do cerne da mensagem de Jesus. Também sei que não se ama um inimigo como se ama um amigo, muito menos um irmão ou um filho.
Eu sei. Mas também sei que se o perdão não faz parte da ética da cultura que corre, continua a fazer parte da Boa Nova de Jesus. E mesmo que o perdão apareça impossível, temos sempre o exemplo de Jesus, guardado não por Mateus, mas pelo médico Lucas, não tão preso à cultura judaica, ele que escrevia para cristãos vindos do paganismo: “Perdoai-lhes, ó Pai, que não sabem o que fazem!” (Lc 23,34).
Arlindo de Magalhães, 17 de Setembro de 2017