Paramos a encíclica Louvado sejas do Papa Francisco, que temos o Tríduo Pascal à porta.
Sabemos todos — de Marcos a João — que foi no primeiro dia da semana que ele ressuscitou: “Terminado o sábado, ao romper do primeiro dia da semana… o anjo disse-lhes… Não está aqui. Ressuscitou!” (Mt 28,1). “De manhã, ao nascer do sol, muito cedo, no primeiro dia da semana, … um anjo disse-lhes: Ressuscitou!” (Mc 16,2). “No primeiro dia da semana, ao romper da alva… Não está aqui, ressusctou!” (Lc 24, 1). “No primeiro dia da semana… logo de manhã, ainda escuro… e Maria Madalena, a correr…” (Jo 20,1).
De facto, tanto “primeiro dia da semana”! Mas há mais.
“Oito dias depois” (Jo 20,26), portanto, noutro primeiro dia da semana; “Tendo ressuscitado de manhã, no primeiro dia da semana”, insiste Marcos (16,9). Os Atos contam que “no primeiro dia da semana, estando nós reunidos para partir o pão…” (20,7).
A importante importância do primeiro dia da semana!
“No primeiro dia da semana…” dirige-se Paulo aos de Corinto (1Cor 16,2).
Só o Apocalipse (1,10) refere o primeiro dia da semana utilizando uma expressão diferente: “No dia senhorial…”, isto é, no dia do Senhor… dies domini > dies dominialis > domingalis > chegamos ao domingo.
“Tendo ressuscitado de manhã, no primeiro dia da semana”, “dia do Senhor”, “estávamos nós reunidos para partir o pão”.
Que faziam então os cristãos no primeiro dia de semana? Atenção que nenhum destes textos que utilizámos tinha mais de 50/60 anos! Quer dizer que, muito antes do fim do séc. I, já os primeiros cristãos faziam o que Jesus lhes tinha dito — “Fazei isto em memória de mim” (Jesus só lhes disse que fizessem “isto”, não no “primeiro dia da semana”; isso resolveram-no eles), — no primeiro dia da semana, dia da Ressurreição. Era no primeiro dia da semana, no dia da Ressurreição, que os primeiros cristãos respondiam ao “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19).
56 “primeiros dias da semana” por ano a celebrar a Ressurreição do Senhor!
E se, uma vez por ano, “fizéssemos o nosso melhor”?, uma festa especial e maior da Ressurreição do Senhor?!
Pois é isso que vamos fazer! O nosso melhor. Nem preto nem roxo, branco! Mas quando?
Branco só na Primavera: há malmequeres, jarros, gardénias, rosas, azáleas, camélias, cravos, crisântemos, flor de sabugueiro, gipsofila, mas tudo branco, jacintos, jasmins, lírios, dálias, flor de laranjeira, sei lá que mais, tudo branco, até os paramentos, porque o Senhor ressuscitou, aleluia! aleluia!; venha a água, pois sem ela não há vida; fora com a cinza, cantar e dançar, alegria; depois do Inverno duro e frio, a Primavera suave e luminosa, as religiões escolhem todas! o sol, venha o sol; o pão sem fermento, pão novo, o da primeira colheita, o renascimento da Primavera; cantemos…
Este foi o raciocíno dos nossos pais, dos primeiros seguidores de Jesus.
A festa da Primavera, originária da Caldeia, aquela rica região do delta dos rios Tigre e Eufrates, terra de grandes culturas, todos os anos se celebrava, no ciclo cósmico da Natureza; era a festa da Novidade. Introduzida na cultura judaica, era já celebrada no exílio do Egito: ofereciam-se a Iavé as primícias do rebanho e do campo, o cordeiro e a primeira cevada, costumes de civilizações primitivas, de pastores e agricultores. Comia-se o cordeiro assado no fogo, com pães sem fermento e ervas amargas. E bebia-se vinho misturado com água.
Fiéis à memória dos seus antepassados, os filhos de Israel, recordados da libertação do Egito, carregaram então a festa cósmica da Páscoa com a celebração da libertação: “Conservareis a memória deste dia, celebrando-o como uma festa em honra do Senhor: fareis isto de geração em geração, pois é uma instituição perpétua” (Ex 12,14). É o que significava o rito observado pelos judeus, no qual o filho mais novo da casa perguntava formalmente ao adulto mais idoso qual a significação de quanto se passava, ao que este lhe respondia: “É o sacrifício da Páscoa em honra do Senhor” (Ex 12,26).
O ritual da Páscoa conservou-se assim praticamente igual ao da Festa da Primavera da Caldeia pagã: cordeiro e pão ázimo, isto é, pão absolutamente novo, sem nada velho, nem fermento sequer. Havia, porém, uma diferença essencial: a festa judaica assentava na História, na Libertação do Povo, enquanto que a Festa caldaica da Primavera era a celebração do ciclo repetitivo da Natureza. Nesta última celebrava-se o eterno retorno da Natureza; na judaica, o avanço do caminho histórico; aqui, há uma Natureza que se renova; ali, um Povo que avança, não obstante as dificuldades do Mar e do Deserto, rumo à Terra Prometida.
Este ritual perdurou através dos séculos: ao tempo de Jesus, celebrava-se assim a Páscoa, tal como se lê no Evangelho de Lucas (22,7/20).
Com a Morte e Ressurreição de Jesus, o maior acontecimento da História da Salvação, foi isso que os cristãos passaram a celebrar, sempre sem perder nada de vista: toda a memória de toda a história anterior.
Permitam-me que saliente uma coisa: nós temos história a celebrar, recordamos eventos. Os caldeus não, esses era “vira o disco e toca o memo”.
Quer isto dizer que só se pode celebrar a Páscoa se há quê e porquê. Esta celebração fazêmo-la ainda nós, hoje, e de duas maneiras, fundamentalmente:
1 — Recordamos a ceia pascal caldaica e depois judaica (a que Jesus celebrou com os discípulos);
2 — recordamos esse gesto de lavar os pés aos irmãos;
3 — recordamos a morte e ressurreição de Jesus;
4 — recordamos a celebração do Batismo, especial conformação com a Morte e Ressurreição, sacramento que é de morte para o Homem Velho e Vida para o Homem Novo (ver Rm 6,1/11);
5 — cumprindo o recado do Senhor — fazei isto em memória de mim (Lc 22,19) — com pão de trigo sem fermento comemos o pão de que necessitamos para o Caminho.
É a solenidade das solenidades e a festa das festas. Dela nasceria todo o ano litúrgico.
Cantemos com alegria…
Arlindo de Magalhães, 24 de março de 2017