Uma vez um doutor da Lei fez uma pergunta a Jesus, para o experimentar: “Que fazer para ter a vida eterna?” (Lc 10,25-26). E Jesus retribuiu-lhe com outra pergunta: “Que está escrito na lei? Como lês” (Lc 10,26).
— Tenho de explicar que os chamados doutores da Lei eram laicos letrados que conheciam e ensinavam bastante bem a Escritura no pátio do Templo. Com 12 anos, Jesus, “encontraram-no no Templo, sentado entre os doutores, a ouvi-los e a fazer-lhes perguntas” (Lc 2,46) —.
Outro doutor da Lei fez-lhe também uma pergunta e Jesus respondeu-lhe: “Ama o Senhor, teu Deus, … e o teu próximo…” e também com a parábola do bom samaritano (10,30-36).
Com ela, Jesus não fez teoria nenhuma. Pegou é nas dificuldades de Israel daquele tempo e atacou as feridas de quem se julgava justo: um sacerdote e um levita, ambos judeus. Um sacerdote, pessoa importante, e um levita, um coitado ministro inferior que tratava das coisas (assim como eu e um dito ministro aqui do altar ou da comunhão”!).
A questão do pobre é hoje uma questão teologal.
Desde logo abandonar o pobre à sua sorte é passar ao lado da imagem e semelhança de Deus: sempre que o fizeste a um destes mais pequeninos, a mim próprio o fizeste (Mt 25,40)
Mas quando se fala do pobre não se refere exclusivamente o pobre de bens materiais. O verdadeiro pobre é agora um pobre do projeto humano, aquele para quem o futuro deixa de ser um motivo de esperança capaz de modificar o presente. O homem pobre de bens materiais, esse tem quase sempre uma grande dignidade e uma grande esperança: quem de nós não é filho de gente pobre? Mas um homem antropologicamente pobre – e há muitos destes que são filhos de ricos – é muito mais pobre que o primeiro. Por isso, o pobre não pode mais ser considerado o destinatário da caridadezinha. É que dar dinheiro aos pobres, qualquer um dá. E daí para a frente, nada mais haverá para dar a um pobre?
Jesus era amigo de (materialmente) pobres, de pecadores, de doentes e de mulheres. Mas o que reunia estes quatro grupos de pessoas não era o fator económico, mas o fator marginalização. Por outro lado, o mesmo Jesus entrou em conflito com outros quatro grupos, os fariseus, os letrados (escribas), os senadores (anciãos) e os sacerdotes. A todos estes, o que os unia não era a riqueza económica (muitos escribas e fariseus não eram ricos), mas a instalação no sistema político-religioso que configurava aquela sociedade.
O que se aproximou, o samaritano, é que foi o próximo daquele que vinha certamente do Templo onde teria ido louvar IAVÉ. O próximo é sempre aquele que se aproxima de alguém: aproximou-se, ligou-lhe as feridas em que deitou azeite e vinho, e, depois de o ter posto em cima da sua própria montada, levou-o para uma estalagem e prestou-lhe assistência.
Esta é a atitude cristã: Próximo é aquele que se aproxima, com respeito e veneração, não para julgar nem para castigar, mas para salvar, próximo dos corações abatidos, como diz o Salmo 33.
Os pobres, sejam quais forem, mas de uma maneira particular os antropologicamente pobres são hoje uma grande questão também teologal. A Igreja tem de ser um grande lugar de solidariedade; mas pode efetivamente distanciar-se do mundo dos pobres. Por isso, os pobres, quer se queira quer não, foram sempre, uma pedra no sapato da Igreja, continuam a exigir-lhe que repense o seu lugar e que-fazer na sociedade e a sua maneira de ser e de estar no mundo.
Mas isto não basta. A Igreja tem também de evangelizar o próprio mundo económico, inspirando-lhe princípios solidários, da empresa à decisão política. Não é só levantar a voz para denunciar as injustiças; não é só também lutar pela mudança de estruturas. Há que combinar denúncia e anúncio, inspirando assim a criação de práticas e costumes que tornem o mundo e o tempo mais fraternos. Porque a conversão não tem uma dimensão apenas individual; mas parte de decisões individuais.
Arlindo de Magalhães, 14 de julho de 2019