Habituamo-nos a ouvir “o Profeta Isaías” no “Livro do Profeta Isaías”. Só que, nos finais do séc. XVIIII, começou a perceber-se que o livro dito do Profeta Isaías tem 3 autores diferentes (não é preciso ser perito para distinguir um texto de Gil Vicente de um outro de Aquilino Ribeiro ou até de Saramago). Houve, portanto, três Isaías: o primeiro terá nascido pelo ano 760 aC; o segundo não sabemos, mas era vivo a quando das duas deportações do povo judaico para a Babilónia, anos 597 e 586; do 3º não se sabe nada.
O textinho hoje lido é do 2º. Viveu — disse — no tempo das deportações para a Babilónia, o monstro político e militar do Médio Oriente daquele tempo. Arrasada a cidade de Jerusalém, a cidade e o Templo, o Povo havia sido despedaçado: as mulheres violadas, os velhos e as crianças assassinados e os homens adultos desterrados para a Babilónia ou escravizados — alguns poucos — na sua própria terra. Povo e terra sem futuro, derrota política, militar e religiosa, o Templo destruído, etc.
Mas o profeta — homem que lê ou percebe o futuro que se não vê —começa a falar de um tempo em que Iavé virá libertar o seu povo; há-de mesmo regressar à sua Terra. É Iavé que domina a História e não Nabuconodosor: “Ouvi, gentes de Jacob, vós que vos orgulhais do nome Israel e invocais o Deus de Israel, … saí da Babilónia!, fugi da Caldeia! Anunciai esta notícia com gritos de alegria, espalhai-a até ao fim do mundo” (48,1-2.20). E diz depois o 2º Isaías que chegará “o servo do Senhor” a trazer esperança ao povo.
Quem é este “Servo do Senhor”?
Quis o Senhor carregar o seu servo com sofrimento, de modo que a sua vida fosse um sacrifício de reparação. Aceitando essa pena, o servo, o justo, verá a luz e alegrar-se-á com a provação vivida».
Acabámos de ouvir um pouco do 4º “cântico do servo” (o 2º Isaías escreveu 4 “cânticos do servo”: cap 42-48; 49-50,3; 50,4-52,12 e 52,13-55): Quis o Senhor carregar o seu servo com sofrimento, de modo que a sua vida fosse um sacrifício de reparação. (…) ele, o justo, justificará muitos, pois que carregou os seus pecados. A Liturgia de 6ª feira Maior utiliza este texto como 1º Leitura da celebração da Paixão. O Servo de Iavé seria o Messias então já anunciado:
«Desprezado e repelido pelos homens, homem de dores, acostumado ao sofrimento, era como aquele de quem se desvia o rosto, pessoa desprezível e sem valor para nós. Ele suportou as nossas enfermidades e – 5 – tomou sobre si as nossas dores. Mas nós víamos nele um homem castigado, ferido por Deus e humilhado. Ele foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa das nossas iniquidades. Caiu sobre ele o castigo que nos salva: pelas suas chagas fomos curados. Todos nós, como ovelhas, andávamos errantes, cada qual seguia o seu caminho. E o Senhor fez cair sobre ele as faltas de todos nós».
Até quase ao nosso tempo — dizia — pensou-se que este “Servo de Iavé” era o Messias prometido que havia de vir, servo esmagado pelo sofrimento que haveria de justificar a humanidade, tomando sobre si as suas iniquidades.
Mas não. Modernamente percebeu-se que nos poemas do Servo de Iavé se falava era do povo de Israel, destroçado pelo sofrimento causado pelo desterro para a Babilónia, um país estrangeiro, depois de perdida a independência. Os poemas do Servo de Iavé referiam-se, à comunidade do povo de Israel que, através do seu sofrimento, apesar dele e assumindo-o, se libertou do seu pecado, se converteu, e assim viu de novo abertas as portas do seu futuro. De facto, 70 anos depois do desterro para o exílio, o povo pôde voltar ao seu país, à sua terra.
Claro que, mesmo depois de retornado, o povo se viu de novo confrontado com outras situações de sofrimento, perseguido por aqueles a quem a Bíblia chama muitas vezes os ímpios, os maus, mas a quem, mesmo assim, continuava a ser prometida a salvação e a glória.
Com este domingo, começa a Liturgia a cheirar a futuro: «Exulta de alegria, estéril, tu que não tinhas filhos, entoa cantos de júbilo… É o Senhor quem o diz…!» (Is 54,1). «Levanta-te, Jerusalém! — gritará já o 3º Isaías (60,1) — Levanta-te! Eis a tua luz! A glória do Senhor se levanta sobre ti!”. Ainda não é o Natal! Esse ainda vem longe! Levanta-te e escuta o futuro, tenta avistar e descortinar o futuro. O que há-de vir é o que já-veio-e-vem-hoje, o mesmo. É o Advento que começa a desenhar-se.
O grupo catecumenal já reuniu e está de novo a caminhar.
Arlindo de Magalhães, 18 de Outubro de 2015
(imagem: Gernika, de Picasso)