Os dias de Jesus

A verdade é que só percebendo bem e até ao fundo a humanidade de Jesus se pode entender porquê e como é que ele é o salvador da Humanidade.


Logo no início do seu Evangelho, Marcos apresenta Jesus a pregar na Galileia, na sua terra, no meio de multidões: em Cafarnaúm, “todos o procuravam” (1,38), a “cidade inteira” (1,33), ”a multidão ia ao seu encontro” (2,13)! “Tanta gente” (2,2)! Resultado: “A sua fama logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da Galileia” (1,28), e “todos se maravilhavam e glorificavam a Deus dizendo: «nunca vimos coisa assim»!” (Mc 2,12). Mas logo começaram os problemas.

Primeiro, da parte dos judeus: “os doutores da Lei que tinham descido de Jerusalém afirmavam: ele tem mas é Belzebu no corpo!” (Mc 3,22).

Eu explico. Jesus começou o seu ministério pela sua terra, pela Galileia. A Galileia era a região cimeira do Reino do Norte. Quando, depois de Salomão, o reino de Israel se dividiu em dois, o reino do Norte dividia-se em duas regiões: em cima, a Galileia; e a Sul, a Samaria. A Galileia fazia, portanto, fronteira com o mundo pagão, e foi por ele influenciada. Ao tempo de Jesus, era já um território bastante paganizado.

Fora aí, em Nazaré, terra donde não podia vir nada de jeito, que Jesus vivera com seus pais (Jo 1,46 e 7,52). Andava, pois, pela Galileia, lugar onde fez os primeiros milagres e deixou os primeiros ensinamentos compendiados naquele resumo: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: convertei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1,15). Claro que tudo isto se soube ao longe. E, desde logo, na capital religiosa. Por isso, “os fariseus reuniram-se com os partidários de Herodes para deliberar como haviam de matar Jesus” (Mc 3,6). Mas ainda era cedo para o fazer.

Por isso, num segundo momento, resolveram enviar inspetores: a ver o que se passava! Foi então que “os doutores da lei, que haviam descido de Jerusalém, afirmaram: «Ele tem mas é Belzebu no corpo»”. Belzebu quer dizer, à letra: “Baal de m…” (Baal era o maior deus do panteão cananeu).

Estavam lançados os dados do conflito que o levariam à morte. O próprio Jesus, no fim da 1ª parte deste Evangelho de Marcos, dirá aos discípulos: “Acautelai-vos do fermento dos fariseus e do fermento de Herodes” (8,15). Jesus tinha de morrer porque tudo se havia já precipitado nesse sentido.

Mas logo surgiram também dificuldades vindas de «os seus». «Os seus», isto é, «sua mãe e seus irmãos» (Mc 3,31), que andavam à procura dele porque tinham tido notícia de que ele andava pirado da cabeça. Vieram, muito naturalmente, repreendê-lo e dar-lhe bons conselhos. Aponta nesse sentido o facto de ele andar já metido com uns tipos no mínimo raros, pescadores, um deles devia ser um estoura-vergas, à letra, Filho do Trovão (é o nosso conhecido Tiago), gente com quem, ainda por cima, se sentava à mesa a comer (1,31; 2,16).

Tudo o que Jesus fazia por terras da Galileia levantou um certo burburinho, positiva e negativamente: uns maravilhavam-se (5,20), outros preocupavam-se. Entre eles, os familiares.

A certa altura, ele próprio, certamente já preocupado com o que se passava, “partiu dali e foi para a sua terra” (6,1). Pior ainda. Foi então que os conterrâneos e familiares entraram em rutura com ele. Sabemos como é a família! Os novos têm de seguir as passadas dos progenitores. Caso contrário…

E Jesus rompeu com a família. Os próprios Doze são o núcleo da uma nova comunidade reunida à sua volta. A história é velha. Já a Jeremias tinham apontado o mesmo: “Os teus próprios irmãos e a casa de teu pai, até eles te atraiçoaram. Até eles te criticam pelas costas”. Ao que o profeta acrescentara: “Deixei a minha família, abandonei a minha herança e entreguei a mãos inimigas o que de mais caro possuía no coração” (Jr 12,6/7).

Quando os velhos «filhos de Abraão» – isto é, os filhos de sangue – recusam, outros (filhos de Abraão) nascerão [até] das pedras (Lc 19,40).

É no seguimento de todo este processo que — quando Jesus foi à «sua terra» (6,1) — até os seus conterrâneos perguntaram ao vê-lo: “ «Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria»? E ficaram perplexos a seu respeito” (6,3).

Seja como for, por isto se vai vendo como os dias de Jesus, com o que fazia e dizia, o iam conduzindo para um drama supremo, o da sua morte.

Temos hoje mais dificuldade em perceber a sua humanidade que a sua divindade? Apesar de tudo, creio que não. A sua divindade atrapalha-nos mais que a humanidade. Mas a verdade é que só percebendo bem e até ao fundo a sua humanidade se pode entender porquê e como é que ele é o salvador da Humanidade.

Arlindo de Magalhães, 5 de Julho de 2015

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