Que me lembre, fui anestesiado três vezes. E em cada uma senti como que uma morte: e se não acordo da anestesia? Ou seja: que há do lado de lá da vida? Tudo o que é devedor do tempo e da matéria, a própria vida, chega necessariamente ao fim. Isto não é uma crença religiosa, um princípio filosófico ou uma regra sociológica. Isto é uma lei da biologia, da física e da química. Mas: acaba aí tudo? ou, como oramos, com a morte, a vida não acaba, transforma-se?
Esta época do ano litúrgico aproxima-nos exatamente dos fins. A teologia medieval tentou a síntese da questão com quatro palavras a que chamou os Novíssimos: Morte, Juízo, Inferno, Paraíso. Porquê novíssimos? Voltamos à etimologia. Novíssimo é o superlativo de novo. Novo quer dizer recente, original ou não usado. Recente quer dizer coisa acabada de chegar (pode dizer-se que em 1995 o telelé era um aparelho recente, também original; quem estaria à espera de meter o telefone, até então pousado lá em casa, no bolso das calças?), ou não usada (eu tenho uns sapatos novos, novíssimos até, último modelo!). No Dicionário da Academia, novíssimo > “que é muito novo”.
Neste sentido, o superlativo novissimus, em latim, quer dizer o último. Assim, numa corrida, há o primeiro a chegar e há o novissimus, o último, o que fecha a meta; atrás dele, só o carro vassoura. Qualquer dicionário de latim, aponta novissimus > o último a chegar. É neste sentido que o Livro de Ben Sirá (7,36) diz que In omnibus operibus tuis memorare novissima tua [em todas as tuas obras, lembra-te dos teus fins] (novissima). Por isso, lembra-te hoje do teu amanhã, ou melhor, do teu fim. Nós, os cristãos, temos na mão a chave da questão, que é Cristo, e acreditamos que, com ele e como ele, ressuscitaremos da tenebrosa morte que nos perturba a existência. (aqui um silêncio diante dos mortos de Paris)
Acabámos todos por gostar mais da suave palavra novíssima, que S. Jerónimo utilizou quando, entre os anos 391 e 406, traduziu a Bíblia do grego para o latim. Com ela se passou a referir os fins do homem. Novissimæ são as coisas últimas. Às coisas novíssimas contrapõem-se as velhíssimas (Estrada Nova – Estrada Velha; Ponte Nova – Ponte Velha; Albergaria-a-Nova – Albergaria-a-Velha, etc.). No âmbito dos fins, velhíssimos eram — na escatologia pagã — o rio Letes, a barca de Caronte e a moeda que se metia na boca do cadáver para a pagar, Hermes e o Hades, o Estige e o Cerbero, etc., etc., toda essa cangada com que o paganismo tentava imaginar o Depois. A todas estas velhíssimas lendas contrapuseram os cristãos os novíssimos — morte, juízo, inferno, paraíso — referidos por uma das mais belas palavras do dicionário da fé: novo > novíssimo.
Os cristãos, no entanto, também se deixaram tomar do grande medo que tantas vezes contagiou a Europa: o muro dos Muçulmanos, que nunca se construiu porque nunca se fixou, andou sempre acima e abaixo, tal como aconteceria, mais tarde, com o de Constantinopla, derrubado em 1453 pelos mesmos árabes. Estes muros — o da China, o de Adriano, na Britânia, as cortinas de ferro ou de bambu, o muro de Berlim ou o da Palestina-sempre-a-aumentar, os muros espalhados agora pelos países do eixo Grécia/Turquia – Alemanha — geraram sempre ondas e tempos de terror e de tremor.
À luz do que testemunhava e via, a Europa cristã enchia-se sempre de perturbação e temores, abarrotando templos onde se multiplicavam penitências, a imaginar os fins dos tempos e a exemplo do tempo que vivia. Os evangelistas, por exemplo, nos chamados discursos escatológicos que puseram na boca de Jesus, imaginaram o fim do tempo, individual e planetário, como misto de um desastre natural e de perdição individual de muitos ou de quase todos: o sol se obscurecerá e a lua perderá o brilho, as estrelas começarão a cair do céu e as forças que há nos céus serão abaladas – dizia Marcos (13,24), na semana passada. Mas Lucas é muito mais assustador na linguagem que utiliza: não ficará pedra sobre pedra (19,44), haverá na terra angústia entre os povos, bramido e agitação no mar, os homens morrerão de pavor, as forças celestes serão abaladas, etc. (21,20-28).
Contagiados pelo Grande Medo, trocámos os Novíssimos — como Leão XIII, poderíamos falar de Coisas Novas — por sustos de condenação e de morte face ao futuro do Universo e aos horizontes gloriosos da vida. Durante muitos séculos, entendemos o tempo novíssimo e quanto ele carrega à letra, como desastre e castigo, dies irae, dies illa! (dia de ira, aquele dia!) em que apareceremos diante do rex tremendae maiestatis (do Rei, tremendo, de majestade), Quantus tremor est futurus! (que tremor o desse dia futuro!). É impossível ler estes versos medievais de uma sequência poética, tão trabalhados pelos compositores do classicismo-romântico dos séculos XVIII e XIX, Mozart à frente!
Quão diferente é isto daquela palavra de Jesus: Vou preparar-vos um lugar. Quando o houver preparado, voltarei de novo a levar-vos para junto de mim, a fim de que, para onde eu vou, vades vós também. E para onde eu vou, vós sabeis o caminho (Jo 14,3).
Arlindo de Magalhães, 22 de Novembro de 2015