Homilia do Pe. Gaspar no 18º Domingo do Tempo Comum (91.08.04), na celebração dominical da Comunidade da Serra do Pilar (Vila Nova de Gaia)
(…) Reunidos para celebrar a Eucaristia, celebramos a comunhão com todos os presentes e com toda a Igreja, mormente com os membros desta comunidade ausentes por motivo de férias.
Ao direito e ao dever de trabalhar corresponde o direito e o dever de descansar. Trata-se do respeito de cada um por si e pelos outros, realizado não só pelo descanso semanal, mas pelo descanso anual. E, num tempo em que a competitividade da produção exige a muitos a venda das férias e o trabalho contínuo sem descanso semanal (com risco de despedimento), e quando o novo pacote laboral se avizinha ameaçador dos direitos dos trabalhadores, com as organizações sindicais sem capacidade de reivindicação suficiente, teremos nós, Igreja, de retomar o nosso papel supletivo de exigir o descanso semanal aos domingos e festas de guarda.
O [relato do] milagre da multiplicação dos pães e diálogos seguintes introduzem-nos na complicada questão, e fundamental, do alimento, do trabalho para o produzir, das formas de o repartir, das relações geradas nestes processos, bem como dos objectivos que o devem marcar.
A qualquer pessoa e a qualquer sociedade é necessário garantir o pão, como sinal do alimento que garante a vida. Antes de mais, garantir o direito à vida, diariamente. Jesus situa-se nesta preocupação ao garantir o alimento no milagre da multiplicação dos pães. Mas vai mais longe: pretende atingir os processos de produção e do repartir do alimento. A luta contra o pecado e a construção da Vida Nova passam por aí.
O milagre da multiplicação é o sinal (sêmiõn) duma nova Economia e das novas forças (dúnamis) a orientar o mundo da economia. Ao mesmo tempo que se manifesta preocupado com a fome do povo e enfrenta a situação, para a resolver, Jesus não está disposto a criar dependências e a favorecer preguiças: «Procurais-me, não porque tenhais entendido o sinal, mas porque comestes o pão e ficastes saciados». Jesus não veio estabelecer uma sopa dos pobres ou alimento para os preguiçosos. Estas [as sopas] resolvem alguns problemas, mas criam dependências e menorizam as pessoas. Todos devem participar no processo de produção dos alimentos segundo as suas capacidades, e é função da sociedade organizar os processos produtivos de forma que todos e cada um tenham possibilidade de participar, à sua medida, mesmo os deficientes. A participação neste processo é não só o meio de cada um não ser pesado para o seu irmão ou para a sociedade, mas o caminho para uma autonomia e uma independência que são a base da liberdade efectiva de pensamento e de acção.
«Trabalhai pelo alimento que permanece»: dar de comer um dia não resolve uma situação. Trata-se de trabalhar por um processo em que o produzir estará de tal forma organizado que cada um terá por justiça (e não apenas por caridade) aquilo que lhe pertence. Nós, como Igreja, temos dificuldade em abordar as questões morais (os valores humanos) que se põem ao processo produtivo. Desculpamo-nos com a falta de capacidade técnica. Estas desculpas não aparecem nas questões de moral sexual. Mas o que nós temos é medo de enfrentar o sistema económico, as pressões dos poderosos e a atracção dos ricos.
Estamos mais à vontade na questão da distribuição, sopas dos pobres, Conferência de S. Vicente de Paulo. Tudo trabalho importante: mas que não seja para criar dependências humilhantes ou para camuflar a máquina que continua a fabricar pobres. Ou para a desculpar.
Distribuir, começa na retribuição justa do trabalho. E à luz do pão repartido do milagre, não podemos deixar de referir que o milagre económico português que tem fabricado alguns ricos e muitos pobres, que tem aumentado o fosso entre uns e outros e mantém a percentagem dos que vivem abaixo do limiar da pobreza em 35%, é um milagre contra o milagre da multiplicação dos pães. Porque o milagre de Jesus é de multiplicação e de distribuição, e o milagre português é de multiplicação e de acumulação. E aqui, queiramos ou não, está o seu pecado. Aquele é pela fraternidade, este é pela desigualdade; aquele sacia a todos igualmente, este apenas a alguns; naquele sobraram doze cestos, neste, os cestos de pão que eram precisos para matar as fomes dos deserdados ficaram a engordar as contas bancárias dos que já comem demais.
«A Obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou». Acreditar em Jesus não é apenas olhar para ele e dizer «eu creio». É sobretudo acreditar nos seus processos, no seu método, nos seus valores. Numa sociedade voltada para a produção, a competição e o consumo, como poderemos lançar os processos duma repartição justa a fraterna dos bens produzidos? Quando nos são propostos como modelo a atingir os níveis de riqueza da Europa e os seus processos de enriquecimento, como fazer valer os direitos dos desempregados, dos empobrecidos, dos reformados, dos países do 3º Mundo, à custa de quem o Norte tem enriquecido? Ainda é possível acreditar numa alternativa fraterna para o Mundo? Ou continuamos a aceitar pacificamente ordenados de 200 contos por mês a par de rendimentos de 15 tostões/mês. «A Obra de Deus é que acrediteis». Há dezassete anos os pobres acreditaram no seu poder de participação. Mas tudo fizeram para que desacreditassem de si próprios e se remetessem a uma participação pelos votos. A lei do menor esforço e a preguiça fizeram o resto: se tivessem quem lhes desse de comer todos os dias, tanto trocavam a liberdade pelas cebolas do Egipto, como corriam atrás de qualquer um que lhes fizesse o milagre diário de dar o pão (e o circo).
O pão do céu no deserto foi um pão para garantir a liberdade face ao poder atractivo do Egipto, um pão que possibilitava a continuidade do processo libertador. O Pão que Jesus dá é mais do que isso: é não só o sinal das fomes corporais saciadas, mas o sinal e a fonte destas ânsias de liberdade total, de fraternidade completa, de participação e de partilha, construção de um mundo novo de mãos dadas, solidários, que alimenta em nós a vida e as capacidades de Deus, no denunciar de sistemas injustos e no anunciar de alternativas geradoras de amor e de fraternidade.