Estamos às portas da grande semana — Santa, Maior ou Autêntica – e do Tríduo Pascal. Na recapitulação catecumenal que a Liturgia quaresmal possibilita às Igrejas, faltam ainda duas referências importantes.
O rei David
O rei por excelência – David – perfaz, com Abraão e Moisés, o trio principal do Antigo Testamento. Mas ele é também o degrau mais importante da genealogia do Messias (Mt 1,1-17), chamado depois o Filho de David (Mt 21,9).
Quem diria? David era o filho mais novo de Jessé e guardava os rebanhos do pai. Mas foi esse mesmo que o profeta Samuel, enviado por Deus, chamou para o ungir como rei. Sempre a preferência de Iavé pelos mais pequenos!
Mas a coisa não foi imediata. Entrou na corte porque era um harpista exímio: tocava para Saúl, o rei, que assim se tranquilizava nos seus cada vez mais frequentes acessos de loucura. Mais tarde, mandado a levar comida aos irmãos que eram soldados do rei, propõe-se aceitar o repto de Golias e lutar com ele. Haveria de o vencer com uma simples fisga. Esta vitória – que levaria as mulheres a cantarem que Saúl matou mil mas David dez mil! (1 Sm 18,7) – despertaria o ciúme do rei. A partir deste momento, tentou matá-lo de mil maneiras. Valeu-lhe sempre Jónatas, filho de Saúl, que o avisava que fugisse. Enquanto isto, David teve o rei à sua mercê por duas vezes mas nunca lhe tirou a vida.
Finalmente, o rei e seu filho Jónatas haveriam de morrer numa batalha contra os filisteus (os antepassados dos Palestinianos). David foi então coroado rei.
Valente soldado, ganharia muitas batalhas. Foi um grande rei, um grande governador e gozou de grande popularidade entre o seu povo. Conquistaria mesmo a cidade de Jerusalém aos jebuseus, o povo que a ocupava, a ela e a toda a terra de Canaã. Jerusalém ficava no cimo da colina de Sião: por isso na cultura judaico-cristã se fala muitas vezes em subir a Jerusalém (Lc 18,31). David fez da cidade a sua capital, levou para lá a Arca da Aliança e planeou construir ali um templo para Iavé. Mas ele trocou-lhe as voltas (1 Sm 7): não serás tu a construir-me uma casa, mandar-lhe-á Iavé dizer pelo Profeta. O templo construi-lo-ia o seu filho Salomão (2 Sm 7,13). Foi um passo importante para o tempo em que não haveria mais uma casa para Deus e outra para os homens, pois que Deus habitaria então com os homens se eles vivessem como irmãos. Mais ainda: tempo viria em que se adoraria a Deus não no alto dos montes nem nos templos de pedra mas em espírito e em verdade, como Jesus disse à samaritana.
Preocupados com os seus feitos dos seus reis, os cronistas enalteceram desde sempre muito mais as qualidades dos soberanos que as suas fraquezas. A Bíblia fala, por isso, pouco do David-pecador, que o foi. Cometeu adultério com a mulher de Urias, o general do seu exército que acabou por colocar mesmo na linha da frente da batalha onde acabaria por morrer (2 Sm 11) … para lhe ficar com a mulher. O profeta Natan denunciou o seu pecado, mas David arrependeu-se de verdade e Deus perdoou-lhe. E a mulher, que entretanto engravidara, perdeu o filho, no que David viu um castigo do seu Deus.
Mais tarde viriam os conflitos entre ele e seus filhos. O mais célebre de todos é o de Absalão, o seu filho preferido, cuja morte David choraria amargamente: “Meu filho Absalão, meu filho, meu filho Absalão! Porque não morri eu em teu lugar? Absalão, meu filho, meu filho!” (2 Sm 19,1).
Já no fim da sua vida o célebre canto de David, disse assim o rei: O Senhor é a minha rocha, o meu baluarte e o meu libertador. Deus, meu rochedo, em quem eu confio, meu escudo, minha força salvadora que me livra da violência! (…) Quem é deus senão o Senhor? Quem é um rochedo senão o nosso Deus? Deus é a minha praça-forte, ele torna recto o meu caminho (2 Sm22.1-2.32-33).
Escrevendo sobre David já depois da sua morte, os autores do Antigo Testamento não tiveram dificuldade em perceber que o seu nome, David, que quer dizer um homem segundo o coração de Deus, tinha sido um bom nome próprio para o rei, porque há mais alegria no céu por um pecador que se converte que por noventa e nove justos que não precisam de conversão (Lc 19,7).
Um grande rei, um grande crente e também um grande pecador! Mas foi ainda a evidência de que Deus cumpria as suas promessas: David foi a grande prova de que o prometido [a Abraão] é devido; farei de ti um grande povo (Gn 12,2).
Na plenitude dos tempos, Jesus seria chamado filho de David. Porque ele vinha cumprir definitivamente as promessas feitas ao grande rei, porque ele – diria o autor do Apocalipse – é o descendente e da estirpe de David (Apo 22,16). Por isso, disse o Senhor a David, a tua casa e o teu reino permanecerão para sempre diante de mim e o teu trono será firme para sempre (2 Sm 7,16).
Também por isto chamamos rei a Jesus. E Pilatos perguntar-lhe-ia se ele era rei (Lc 23,3).
(Homilia na Serra do Pilar, 4º Domingo da Quaresma, 2008.03.02)