Passagem

Barnett Newman, ‘black fire’ (1963)

Peço desculpa de quantas vezes repetir o mesmo: há coisas que são fundamentais e outras ridículas. Sabem porque é que o baixo clero meteu na cabeça do povo que em certas sextas-feiras não se pode comer carne? Repetirei para outra vez!

Agora. Antes de mais nada, a Igreja primitiva celebrou uma festa pascal semanal: foi o “primeiro dia da semana”, o “dia a seguir ao Sábado”, aquele em que Jesus ressuscitou, mais tarde chamado o domingo ou “dia do Senhor”, também “dia do sol” e “oitavo dia”. É clara a ressonância pascal de todas estas expressões referidas ao Senhor Jesus ressuscitado.

Como é que desta Páscoa semanal se passou à anual? Tratou-se de facto de um passo importante na Liturgia cristã, de amplas consequências para o futuro, pois a Páscoa anual viria a ser o verdadeiro gonzo de toda a Liturgia cristã e do próprio ano litúrgico.

Mas é hoje praticamente impossível determinar quando isso aconteceu. Certamente que muito cedo: é até possível que a Carta de Pedro, centrada no tema do Batismo e da Páscoa do Senhor, seja uma verdadeira “folha da celebração” de uma Vigília Pascal celebrada em Roma já pelos anos 50 do séc. I. No entanto, as primeiras notícias que nos chegaram da festa da Páscoa anual são relativamente tardias, da segunda metade do séc. II. Parece certo que ela começou por se celebrar primeiro no Oriente, em Jerusalém concretamente, só depois tendo depois passado a Roma.

A Páscoa cristã assenta numa festa anterior religiosa muito mais antiga, que primeiro foi pagã e de clara ressonância cósmica: repito mais uma vez. Quando a Natureza se renovava e renascia, com o nascimento da Primavera, os nossos antepassados pagãos louvavam as divindades oferecendo-lhes as primícias dos seus frutos: os pastores um cordeiro, os agricultores um pão novo (sem fermento) cozido com a farinha moída do primeiro trigo colhido nos campos do Médio Oriente. Sobre esta festa pagã e seus rituais – cordeiro assado, saladas, pão ázimo e depois vinho – assentou depois a festa pascal judaica que celebrava um facto histórico: a sua libertação do Egipto. É sobre esta festa judaica, que Jesus celebrou com os seus, que assenta a festa cristã da Páscoa da Ressurreição do Senhor que continuamos a celebrar ritualmente com “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29 e 36), pão de trigo sem fermento e com vinho.

Que celebramos então na Páscoa?

Foi certamente S. João quem melhor respondeu a esta pergunta, pondo na boca de Jesus, sentado já à mesa para a “última ceia”, estas palavras: “Saí do Pai e vim ao mundo; agora deixo o mundo e retorno ao Pai” (Jo 16,28).

Nelas faz o evangelista toda uma síntese do mistério de Cristo. A vida de Jesus não é uma pura sequência de factos soltos, mas uma existência penetrada de uma dinâmica clara e consequente.

Define-a, antes de mais nada, todo um processo de humilhação e/ou abaixamento que se torna visível com o seu nascimento (“desceu dos céus e incarnou … e se fez homem”) e que acaba na morte (“Humilhou-se até à morte e morte de cruz” – Fl 2,8). Depois, um movimento inverso, um processo de glorificação e retorno ao Pai, encenado por Paulo com estas palavras: “[Deus] ressuscitou-o dos mortos e sentou-o à sua direita nos céus, muito acima de [tudo] … não só deste mundo como do que há de vir” (Ef 1,20-21).

Há, portanto, nesta leitura da vida de Jesus a ideia de passagem de uma etapa a outra, o que o próprio S. João refere com as palavras “Tendo chegado a hora de passar deste mundo ao Pai…” (13,1). E é na cruz que, de uma maneira clara, se dá esta passagem, nela convergindo, digamos que de maneira misteriosa, tanto a humilhação e a morte de uma vida, como a sua glorificação e triunfo. O Cristo da Cruz é, assim e ao mesmo tempo o homem das dores, sacrificado e morto, e o Senhor triunfador, vencedor da morte.

Paulo, como só ele sabe fazer, dirá tudo num dos seus conhecidos hinos cristológicos:

«Cristo – que era de condição divina -,
não pretendeu dizer-se igual a Deus;
antes se esvaziou de si mesmo
e tomou a condição de escravo.
Tornando-se igual aos homens
e passando por um simples homem,
rebaixou-se a si mesmo,
submetendo-se inclusive à morte,
e morte de cruz.
Por isso mesmo Deus o exaltou,
e lhe deu um nome
acima de todos os nomes.
Assim sendo, que todo o joelho se dobre
ao nome de Jesus,
no céu, na terra e nos abismos,
e que toda a língua proclame:
Jesus Cristo é Senhor
para glória de Deus Pai» (Fl 2,6-11).

Neste hino se descreve todo o trajeto do mistério de Cristo, interpretado à luz da Páscoa. Os dois aspetos que ele reúne – humilhação e glorificação – aparecem aqui claramente desenhados e ligados, formando uma unidade indissolúvel.

Não esqueçamos que, como muitas vezes tenho dito, a Páscoa foi no princípio a única festa anual da Liturgia cristã (embora, desde o princípio, ela se celebrasse semanalmente no “domingo”). Só muito mais tarde, no séc. IV, apareceu a celebração do Natal.

Isto não quer dizer que a Igreja tenha estado quatro séculos sem a celebração total, ou completa, do mistério de Cristo; pelo contrário, porque na Cruz se termina o processo da sua humanidade começado na Natividade (a Incarnação) mas começa também o da sua glorificação, na cruz acontece esta passagem.

É tudo isto que celebramos na Páscoa. Por isso, e não por acaso, a palavra Páscoa significa “passagem”: celebramos a passagem de um Deus a homem, um Deus que passou do mundo de Deus ao do homem (Incarnação), e deste voltou ao de Deus (Redenção). E nós com ele e como ele: “Ou ignorais que todos nós fomos batizados [como ele] na sua morte e caminhamos por isso mesmo para uma vida nova?” (Rm 6,3).

Mas antes disso, por interesses teológicos, a Páscoa passou a significar outra coisa! Como veremos, espero!

Arlindo de Magalhães, 24 de março de 2019