Manuel de Sousa Coutinho, fidalgo de ascendência nobre, nasceu em 1555 (São Bartolomeu dos Mártires nascera 41 anos antes); Coutinho casou em 1583 e em 1614 ingressou também no convento dominicano de S. Domingos de Benfica, em Lisboa, com o nome de Frei Luís de Sousa. Nele morreu em 1632. A mulher fez o mesmo, mas entrando no convento “do Sacramento”, também em Lisboa.
Entrado no convento, Sousa Coutinho (então Frei Luís de Sousa) foi instado a escrever “uma obra admirável (A vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires), na qual o seu estilo sereno e suavíssimo se manifesta em todas as páginas”. É um dos mais brilhantes autores de língua portuguesa.
Dois pequenos textos:
Os bens da Igreja são património dos pobres
Achou o Santo no arcebispado (Frei Bartolomeu dos Mártires) algumas coutadas de montes e rios que seus sucessores estimavam e faziam guardar para dias de passatempo. E estas são hoje delícias dos príncipes e uma das partes em que fundam estado e grandeza (e não é cousa indigna, se o rigor extraordinário com que se defendem as coutadas se temperara de maneira que não ficaram sendo laço irremediável de pobres e coitados).
Uma das do arcebispado está no caminho que vai da cidade para Santiago de Esporões. Indo um dia o arcebispo visitar esta igreja, andavam uns pobres homens roçando mato na coutada. Alvoroçaram todos os que o acompanhavam, e alguns diziam que seria bem fazê-los prender e castigar.
Repreendeu-os o Santo, e estranhou-lhes o dito e a tenção; e, passando, disse aos que cortavam o mato que continuassem embora no serviço e fizessem seu proveito e, se alguém lho quisesse tolher, acudissem a ele.
E desde logo, tornando para a cidade, mandou largar e franquear todas as coutadas, para dar mais este refúgio à gente pobre. Porque a sua opinião era que o ofício do prelado consista em ser pai e remediador de pobre, e sentia muito não se entender a praticar assim por toda a Cristandade.
De sorte que foi voto seu, quando se achou no sagrado Concílio de Trento, e nele com veemência instou que se decretasse que todo prelado, depois de tomar de suas rendas o necessário para um côngrua e decente sustentação de sua pessoa e casa e oficinas, tudo o mais depositasse no tesouro de sua sé, aplicado logo, como património que era de Cristo, para sustentação dos pobres, e daí se repartisse por eles. E ajuntava que declarasse o Concílio por homem que o alheio possuía e retinha o bispo que o contrário fizesse. (…).
Houve em Braga um homem nobre que se vendia por muito afeiçoado às por muito afeiçoado às cousas do Santo e, como tal, matava-se por lhe persuadir se ilustrasse seu nome com fazer nos paços pontificais alguma fábrica sumptuosa que perpetuasse neles sua memória, ou, quando menos, mandasse reparar alguns aposentos que se iam danificando.
Escusava-se o Santo com as necessidades dos pobres que eram grandes, e eles muitos em número, e os tempos cada vez mais apertados de esterilidades, e fomes, e trabalhos.
Vendo-se o arcebispo perseguido e tentado um dia demasiadamente, cortou a prática, dizendo:
– Verdadeiramente, Senhor, que me obrigais a vos dizer que sois pior com esta teima que o nosso Satanás. Porque ele, se queria persuadir a Cristo que fizesse das pedras pão, já era cousa de que poderia resultar algum proveito aos pobres; mas vós matais-vos e matais-me, porque faça pedras do pão dos pobres!
Assim, nunca gastou dinheiro em edifício de gosto nem vaidade, despendendo muito e com muito gosto nos que eram de serviço de Deus, e proveito dos próximos.
(A vida de D. Frei Bertolameu dos Mártires, livro escrito por Frei Luís de Sousa, Livro V, cap.18)
Na cidade… todo o rol de pobres
Nesta primeira visitação que fez (o já bispo Bartolomeu à cidade episcopal de Braga) foi tomando estreita e miúda informação das necessidades mais precisas que havia em cada lugar, e os nomes dos necessitados, tanto gente recolhida, como mendicante das portas, fazia apontar com distinção das ideias e sexo e qualidades, e a todos estes mandou conforme ao estado de cada um e ao que mais lhe convinha; e foi um grande número, porque nos consta que ano que corria a terça pare do arcebispado, chegavam a quatrocentas pessoas as que vestia.
Na cidade mandou tomar e rol todo género de pobres, assim das portas como envergonhados, e viúvas e donzelas honradas, com tanta diligência que não havia necessidade tão encoberta que andasse fora dos seus memoriais. E porque receava ficar-lhe alguma por remediar, como se fora algum grande delito, encomendava a pessoas de confiança e virtuosas que, como todo resguardo e cuidado, procurassem saber que havia gente que antes quisesse padecer (como às vezes acontece), que manifestar-se e logo lhe dessem aviso para não lhe escapar o socorro. E ele, por outra parte, com o mesmo segredo, se informavam se vivia virtuosamente , como achava necessidade e virtude, logo entravavam no rol e, conforme a qualidade e virtude, logo entravam no rol e, conforme à qualidade e família, lhes taxava a quantidade que haviam d’haver, de seu esmoler, de pão, carne e peixe, azeite e vinagre, para cada semana; e o pão o mandava dar em grão. Aos de mais qualidade ajuntava quantia certa de dinheiro e alguns alqueires de pão na entrada de cada mês. E a todos se acudia com tanta pontualidade que nem no dia limitava havia falta, nem na taxa, alteração. Estes eram providos todos de vestido, e às mulheres mandava dar mantos para não faltarem ir à Igreja; para o qual efeito tinha em casa peças de pano e sarjas que mandava comprar por junto, como ao adiante diremos. A muitos que moravam em casa alugadas mandava pagar os alugueres.
A esmola da porta que se dava a todos os pobres que a ela vinham era quartas e sextas feiras, e era em dinheiro; e achava-se que passavam de mil pessoas as que de ordinário vinham a ela em cada um destes dias. Afora esta esmola, costumava o Arcebispo dar de sua mão outra a todos quantos lhe pediam sem exceção de pessoa; e para isso trazia na algibeira quantidade de vintéis em prata, que outra moeda nenhuma conhecia, nem lhe sabia a valia.
Outras esmolas fazia extraordinárias a mosteiros pobres de frades e freiras, em que despendia muito, por serem muito contínuas.
(A vida de D. Frei Bertolameu dos Mártires, livro escrito por Frei Luís de Sousa, Livro I, cap. XX)
São Frei Bartolomeu dos Mártires, roga por nós!