Porquê e para quê?

Erik Ravelo, ‘Los Intocables’ (Mais informações aqui: https://artesemfronteiras.com/os-intocaveis-do-artista-erik-ravelo/)

Não há dúvida nenhuma: Jesus morreu violentamente. Assim o afirma a pregação primitiva, tanto na que se pode chamar uma versão histórica – esses judeus que mataram Jesus e os profetas (1 Ts 2,15) –, como numa outra, “mais teológica” – tendo sido entregue, segundo determinado desígnio e prévio conhecimento de Deus, vós o matastes cravando-o na cruz com mãos ímpias (At 2,23). No fim de contas, é isto que contam todos os Evangelhos: eles dão à paixão e morte de Jesus uma tal importância que cada um deles não é mais que a história da Paixão e da Ressurreição antecedida de uma introdução mais ou menos longa.

A morte violenta de Jesus obriga-nos a duas perguntas: Porque mataram Jesus? (pergunta histórica pelas causas da sua morte) e Porque morreu Jesus? (pergunta teológica pelo sentido da sua morte).

Jesus foi condenado à morte e morreu numa cruz, castigo de escravos e subversivos. Mas antes houve um processo, isto é, houve uma razão para a sua morte, não se tratou de uma pura arbitrariedade.

Há muito que Jesus entrara em conflito com os chefes religiosos. O evangelista Marcos fala nos sumos sacerdotes e todo o conselho que buscavam algum testemunho contra Jesus para o fazer morrer (14,55), e diz que eles chegaram à conclusão unânime de que devia morrer (14,64). Os membros da casta sacerdotal, irritados por ver que Jesus se erigia em reformador religioso, não hesitaram.

Mas não só isto. Nos evangelhos em geral, embora mais manifestamente em Lucas, há uma tendência clara em atribuir aos Judeus a maior fatia da responsabilidade pela morte de Jesus. No entanto, Jesus morreu crucificado como malfeitor político e com um tipo de morte que só o poder político (romano) podia sentenciar. A causa da sua condenação foi redigida em termos políticos: que se tinha feito passar por rei dos judeus!: Jesus de Nazaré, rei dos judeus (INRJ), mandou Pilatos escrever na cruz. É verdade que se tratava de uma acusação genérica – Encontrámos este homem a incitar o povo à revolta, proibindo o pagamento do imposto a César e dizendo-se Messias e Rei (Lc 23,2) – embora houvesse, por aqueles dias, um clima propício a este tipo de acusação: acontecera mesmo uma revolta em que se perpetrara um homicídio (Mc 15,7). Pilatos, não convencido da sua culpabilidade, ainda tentou negociar a sua libertação por troca com um condenado político, Barrabás, mas não conseguiu. É que os judeus tinham apresentado Jesus a Pilatos como politicamente perigoso e pregador subversivo. À volta desta acusação andavam episódios como o do tributo a César, o da ameaça da destruição do Templo e o da pretensão de ele próprio ser rei (Jo 18,37).

E quando Pilatos pôde ter começado a dar sintomas de não estar muito convencido destas argumentações, os judeus encostaram-no à parede: Se o soltas não és amigo de César; todo o que se faz rei está contra o imperador (Jo 19,12). Apertado por esta disjuntiva, foi então que Pilatos lhes entregou Jesus para ser crucificado (Mc 15,15).

Digamos que, de um ponto de vista legal, a condenação de Jesus não tem lógica nem justiça. Do ponto de vista religioso, ele era o mediador do Reino de Deus (e não do estado romano); Pilatos era o mediador do estado romano e de César (e não do reino de Deus). Afinal foi o que formularam os Judeus: ser amigo de Jesus ou de César, ser ou não rei e, portanto, enfrentar ou não a César.

Portanto, a morte de Jesus não é uma resolução de ordem estritamente política: há que escolher entre o Deus de Jesus ou o deus de Pilatos. A razão final pela qual Pilatos pôde mandar Jesus para a crucifixão, reconhecendo embora a sua inocência pessoal, é que o faz em nome de um outro deus, o imperador. Pode assim dizer-se que Jesus foi crucificado pelos romanos não só por razões táticas e por amor da tranquilidade e da ordem de Jerusalém, mas sobretudo em nome dos deuses do estado romano que asseguravam a pax romana. E se alguém se pergunta como é que um homem religioso como Jesus pode ser tão perigoso dentro de um império como o romano, a razão é que é a partir da religião que se atingem os fundamentos da sociedade da maneira mais radical. De facto – os judeus foram espertos! – Jesus era muito mais perigoso que Barrabás.

A morte de Jesus não foi, portanto, nem um erro judicial nem uma morte querida por Deus. Como podia o nosso Deus querer a morte de Jesus?

A morte de Jesus foi uma consequência da sua vida, da sua incarnação num anti-reino de morte. E se nada mais tivesse acontecido depois da sua morte, Jesus teria morrido como tantos outros que, apesar da sua luta pela causa da Vida, caíram já no esquecimento da multidão. Permaneceria sem dúvida, como em todos esses casos, a questão do porquê da morte de (mais) um justo e inocente, e, no fim de contas, do porquê, da razão, de toda a morte. E a resposta, para quem tem a ousadia de fazer perguntas destas, seria simplesmente: a História é assim.

Mas com Jesus não foi assim. Os discípulos afirmariam depois que ele estava vivo e em plenitude. E muitos poderão ter pensado que, depois da sua Ressurreição, não haveria já razão para nos perguntarmos porquê a morte de Jesus. Mas a questão é exatamente ao contrário: precisamente porque, depois da Ressurreição, o confessamos como Filho de Deus.

Mas antes disso, já um pagão, “o centurião”, o comandante de uma centúria de militares, tinha percebido que “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39)!

E era um pagão!

Arlindo de Magalhães, 7 de abril de 2019