Numa cultura – a bíblica – que era também, ou mesmo sobretudo, pastoril, a figura do pastor era determinante.
Porque convivia muito de perto com a realidade da vida pastoril, também a cultura bíblica de há muito se servira da analogia. Iavé é o verdadeiro pastor (Sl 23,1) e Israel o seu rebanho (Is 40,11). Daí a profissão de fé: “O Senhor é meu pastor, nada me pode faltar. Leva-me a descansar em verdes prados…”.
É nesta perspetiva que Jesus se diz um bom pastor: “Eu sou o bom pastor, … conheço as minhas ovelhas … e dou a vida por elas” (Jo 10,11, 14 e 15).
Esta é a genuína imagem bíblica.
Só que…, tirou-se dela uma conclusão indevida: … e vós sois as ovelhas, o rebanho, vós, isto é, aqueles que na Igreja não são pastores.
A autoconsciência da Igreja tinha chegado ao mais baixo, apesar de ter passado pela imagem da Igreja ser um corpo.
Porém, no Concílio Vaticano II, quase sem ninguém dar por ela, surgiu de repente a ideia que haveria de se impor: a Igreja é um Povo. Esta afirmação provocou uma verdadeira revolução eclesiológica. Porque um Povo é muito mais que um corpo, muito mais rico: primeiro, é verdade, é também, composto dos muitos que, pelo Batismo, são radicalmente iguais em direitos e deveres, não há mais pastor e ovelhas, não há mais os de cima e os de baixo; é composto de muitos igualmente capazes cada qual em seu lugar (de vida), e finalmente um organismo vivo que produz cultura (cada povo tem a sua, desde logo a língua que fala).
Passaram-se muitos séculos: Igreja é um rebanho?, sim mas… não é uma carneirada!, é um corpo?, sim mas… não doente nem mutilado!, é um povo?, sim… mas não uma democracia! O mesmo Concílio Vaticano II o diz de outra maneira: “a igreja seja em Cristo como que — é muito importante este como que, veluti em latim — o sacramento ou sinal e o instrumento da íntima união Deus e com todo o género humano” (LG 1).
Tudo isto já está soprado pelo Espírito de Deus. O que falta para levar à prática numa Igreja universal, tão grande, composta de tantas igrejas locais tão diferentes, “ela [que] entra na história dos homens ao mesmo tempo que transcende os tempos e as fronteiras dos povos” (LG 9), ela que “fomenta e assume as qualidades, as riquezas, os costumes e o modo de ser dos povos” (LG 13). E isto é tão difícil! Tão difícil numa pequena comunidade de 300 ou 400 pessoas! Tão difícil numa igreja local, uma diocese! Tão difícil numa Igreja continental. Tão difícil na Igreja à escala mundial!
Mas isto é também tarefa. Tarefa das bases, das comunidades e das Igrejas, tarefas dos que, nas igrejas, presidem em nome do Senhor.
O Espírito do Senhor cubra com a sua sombra o presente da Igreja. “A condição deste Povo é a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, a sua lei é o mandamento novo, e tem por fim o Reino de Deus!” (LG 9).
Ouvi-nos, Senhor!
Arlindo de Magalhães, 22 de abril de 2018